A história do chamado “índio branco” ou “mameluco albino” que viveu entre as selvas do Xingu e as ruas de Cuiabá, envolveu personagens ilustres, lendas amazônicas e um desfecho trágico que comoveu o país. Conhecido como Dulipé, ou ainda Tripé, este jovem de traços nitidamente europeus – pele muito clara, cabelos louros e olhos azuis – foi apontado por muitos como descendente direto do lendário coronel Percy Harrison Fawcett, o explorador britânico que desapareceu misteriosamente no interior do Brasil em 1925, acompanhado de seu filho Jack e do amigo Raleigh Rimell.
A figura de Dulipé foi descoberta pelo jornalista Edmar Morel, autor do livro “E Fawcett Não Voltou”, que relatou com detalhes suas experiências e sentimentos a respeito do jovem. Morel revelou, tempos depois, carregar um profundo remorso por ter incentivado a saída de Dulipé das selvas do Xingu: “Deus me perdoará desse pecado”, desabafou, referindo-se ao trágico assassinato do mameluco em Cuiabá.
Segundo os registros históricos, o general Cândido Rondon, então uma das maiores autoridades brasileiras em questões indígenas e exploratórias, conheceu pessoalmente Dulipé em 1943. Rondon, contudo, sempre se manteve cético sobre a suposta filiação do jovem ao clã Fawcett. “Este índio branco é o epílogo de uma longa, misteriosa e fascinante história que começa com o coronel Fawcett e seu filho Jack, que um dia se afundaram no sertão e de lá não voltaram, senão em notícias fantásticas e contos fabulosos”, declarou o general em entrevista ao Correio da Manhã em julho de 1944.
Ainda segundo Rondon, “é incerto e contestado dizer que Dulipé — ou Tripé, como o chamávamos — seja filho de Jack Fawcett. O inglês não seria capaz de uma coisa destas. Foram os jornalistas que o fizeram filho de Fawcett. Coitado, é uma vítima da civilização.”
De fato, a versão mais romantizada dizia que Dulipé seria filho de Jack Fawcett com uma mulher indígena da região, o que explicaria seus traços europeus, além de sua presença entre os Kuikuro do Xingu. No entanto, até mesmo Brian Fawcett, outro filho do coronel inglês, negou categoricamente que houvesse qualquer vínculo familiar com o jovem.
A trajetória de Dulipé, nascido e criado entre os Kuikuro, é cheia de episódios que misturam aventura, lirismo e tragédia. A primeira reportagem sobre ele circulou em novembro de 1943, quando o Correio da Manhã noticiou: “Foi encontrado entre os índios do Rio Xingu um jovem branco que se presume seja filho de Jack Fawcett”. No mesmo ano, o general Rondon se deslocou especialmente a Cuiabá para conhecer Dulipé, ocasião descrita como “emocionante” pelo jornal.
Descrito como “um semideus vestido de plumas e penas”, adorado como uma divindade pelos guerreiros rudes e ingênuos do Xingu, Dulipé foi retratado pelos jornalistas da época com lirismo: “Filho de branco, quem sabe, filho de algum perigo… Dulipé, mancebo louro como a árvore dourada das nossas florestas, o ipê cor de mel, cor do ouro que se esconde debaixo da terra e do sertão.”
O Serviço de Proteção aos Índios, liderado por Álvaro Duarte Monteiro, foi responsável pela transferência de Dulipé do Xingu ao posto Simão Lopes, e posteriormente a Cuiabá, com a finalidade de adaptá-lo à civilização. A adaptação foi difícil. Relatos apontam que Dulipé mal sabia como sentar-se em uma carteira escolar, sendo-lhe ensinadas as primeiras letras e números com uma caixa de dados. “No fim da aula, o neto do coronel Fawcett já distinguia o A e, numa folha de papel, copiou as letras A, B, C e os números 1, 2 e 3”, registrou Edmar Morel.
Antes disso, havia enfrentado graves problemas de saúde. Em outubro de 1944, foi internado na casa do próprio Álvaro Duarte, que cuidou pessoalmente de sua convalescença. Devido à gravidade inicial de sua moléstia, foi solicitada ao Rio de Janeiro a penicilina, então recém-desenvolvida. Graças à intervenção do general Rondon e da primeira-dama Darcy Vargas, o medicamento foi enviado de avião, mas, felizmente, quando chegou a Cuiabá, Dulipé já havia superado a crise.
O nome Dulipé, ou Tripé, surgiu em meio às confusões linguísticas da relação com os brancos. Segundo Morel, “a primeira vez que eu vi falar do nome do mameluco escrevi da seguinte maneira: Idulipé, depois Dulipé e, finalmente, agora, Tripé. O certo, porém, a meu ver, é Dulipé”.
O desfecho dessa saga, no entanto, é trágico. Em 19 de abril de 1959, Dulipé foi assassinado em Cuiabá, próximo à ponte sobre o Córrego da Prainha, ligação entre a Rua 15 de Novembro e o bairro do Terceiro. Segundo noticiou O Estado de Mato Grosso, o crime ocorreu após um desentendimento em um baile, envolvendo o paraibano Orlando Alves da Silva, sapateiro de 28 anos. Ambos estavam embriagados. Após o baile, Orlando foi em casa, armou-se e, ao reencontrar Dulipé, golpeou-o com duas punhaladas fatais. O agressor foi preso em flagrante e conduzido à cadeia pública.
Dulipé morreu como viveu: cercado de mistério e incompreensão. Sua breve passagem pela civilização transformou-se em símbolo das complexas relações entre culturas, do fascínio romântico dos civilizados pela pureza indígena e, ao mesmo tempo, da trágica violência que resulta de tais encontros.
A saga de Dulipé permanece como uma das histórias mais intrigantes da Amazônia e do Brasil profundo — entre o mito e a realidade, entre a lenda e a carne, entre o Xingu e Cuiabá.
*Francisco das Chagas Rocha é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT).
*Fotos da Revista 0 Cruzeiro
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