21 de Maio de 2025

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opinião Domingo, 18 de Maio de 2025, 06:00 - A | A

Domingo, 18 de Maio de 2025, 06h:00 - A | A

SENTINELA DO TEMPO

O Galo da Igreja da Boa Morte de Cuiabá

*FRANCISCO DAS CHAGAS ROCHA

 

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No coração do bairro Boa Morte, em Cuiabá, repousa uma das mais discretas, porém emblemáticas igrejas da capital mato-grossense: a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. Com sua arquitetura simples e singela, ela guarda segredos que resistem ao tempo — e entre esses mistérios está o velho Galo da Torre, uma peça de metal que, por décadas, coroou a paisagem urbana da cidade e hoje representa um elo entre o passado e a memória afetiva dos cuiabanos.

 

Minha relação com o Galo da Boa Morte teve início em 2009, quando participei da restauração da igreja. Durante os trabalhos, encontrei o velho galo num canto de uma sala, todo empoeirado, esquecido entre caixas e objetos antigos. Desde então, ele ficou guardado ali, quieto e enigmático. Minha curiosidade sobre sua origem e função crescia a cada dia. Busquei respostas com historiadores, moradores antigos, em livros e arquivos — mas o silêncio da história parecia intransponível.

 

Somente em 2017, com a permissão do frei responsável pela paróquia, pude examinar o galo de perto. Armado com uma câmera fotográfica, fotografei cada detalhe, cada curva da peça metálica. Foi então que o inesperado aconteceu: de dentro de uma das pernas do galo caiu um pequeno rolo de papel, amarrado com cordão, contendo uma preciosa informação histórica. O bilhete dizia:

 

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“MUSEU DOM JOSÉ

 

Sob a direcção de Dr. Euphrásio Cunha
Este gallo pertenceu à Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e encimava o alto daquela Igreja.
Foi elle derrubado por uma faisca electríca, depois permaneceu por vários annos naquella Igreja, foi aos pedaços presenteado ao Museu Dom José, que o mandou consertar nas officinas de Dona Fortunata, sendo o consertador o seu operário Dídimo Ribeiro de Moraes.
Em 23 de outubro de 1936
Cuyabá”

 

 

A nota esclarecia que o galo havia sido atingido por uma descarga elétrica (um raio), o que levou à sua queda da torre. Segundo informações orais transmitidas por Dona Maria de Arruda Müller, a torre da igreja, ao ser atingida pelo raio, desabou completamente, e consequentemente o galo também caiu. Parte dos escombros ou terra dessa torre teriam sido utilizados na construção do Solar da família Müller, cuja edificação data de 1898. Trata-se, portanto, de um raro cruzamento entre memória oral e patrimônio material cuiabano.

 

Apesar do achado, nenhuma fonte escrita posterior à década de 1930 confirmou o raio ou a queda da torre — nem jornais, nem hemerotecas. Ainda assim, evidências literárias confirmam que o galo já existia há muito tempo. Em 1869, Joaquim Ferreira Moutinho, em Notícia sobre a Província de Mato Grosso, descreve a Igreja da Boa Morte como tendo uma única torre encimada por um galo. Tal detalhe confirma a presença simbólica do galo, visível a viajantes e moradores, marcando a paisagem cuiabana.

 

Além do valor simbólico e arquitetônico, o galo da torre da Igreja da Boa Morte tinha também uma função prática e relevante: segundo relatos de antigamente, muitos viajantes que vinham de diferentes localidades — como Diamantino, Vila do Rosário, a região do Manso e Chapada dos Guimarães — avistavam o velho galo de longe, usando-o como ponto de referência para se orientar em direção à cidade de Cuiabá. Isso reforça a importância histórica e geográfica desse elemento que, por tanto tempo, vigiou silenciosamente a cidade do alto.

 

A história também ganha contornos emocionais na crônica Sinfonia da Boa Morte, de José de Mesquita, publicada em 1941 no jornal A Cruz. Nela, o autor recorda com saudade sua infância ao contemplar, com olhos de menino, o galo na torre:

 

“Lembro-me da emoção com que, criança, fui ver teu galo da torre…”

 

Com palavras delicadas, José de Mesquita transforma o bairro em poesia e a Igreja da Boa Morte em um oratório sagrado da memória coletiva. Seu relato nos transporta a uma Cuiabá provinciana, serena, quase litúrgica, onde o tempo parecia caminhar ao ritmo dos sinos e da fé.

 

A Paróquia da Boa Morte foi criada em 14 de agosto de 1905, tendo como primeiro pároco Monsenhor Bento Severiano da Luz. Entre 1917 e 1939, assumiu a direção o Monsenhor Alexandre Trebaure, personagem que provavelmente intermediou a entrega do galo ao Museu Dom José. Segundo o historiador Luís Phillipe Pereira Leite, a paróquia era paupérrima — padres sobreviviam da generosidade dos fiéis. Isso explica por que, mesmo danificado, o galo jamais pôde ser substituído por outro: não havia recursos.

 

Reprodução

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O Galo da Boa Morte é, portanto, mais que um adorno ou símbolo estético: é testemunha silenciosa da história de Cuiabá, da fé de um povo e da persistência de sua memória. O simples fato de ele ter resistido ao tempo, à queda e ao esquecimento, para ser redescoberto por mãos curiosas e apaixonadas, mostra que a história não morre — ela apenas repousa, à espera de ser despertada.

 

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*Francisco das Chagas Rocha é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT).

 

 

 

Referências:

• Moutinho, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a Província de Matto Grosso, 1869.
• Mesquita, José de. Sinfonia da Boa Morte, crônica publicada no jornal A Cruz, 03 de agosto de 1941.
• Leite, Luís Phillipe Pereira. Monsenhor Alexandre Trebaure.
• Bilhete encontrado no interior da escultura do Galo da Boa Morte, 2017.
• Informação oral de Dona Maria de Arruda Müller, repassada por tradição familiar.

 

 Acesse Cuiabá de Antigamente

 

 

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