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opinião Quarta-feira, 28 de Maio de 2025, 06:00 - A | A

Quarta-feira, 28 de Maio de 2025, 06h:00 - A | A

DAS PIQUIRAS ÀS LÂMPADAS

A Saga da Luz em Cuiabá

*FRANCISCO DAS CHAGAS ROCHA

  

Cuiabá Antigamente

 

 

 

A história da iluminação pública em Cuiabá é um fascinante percurso que acompanha o próprio desenvolvimento da cidade, desde os tempos em que era um arraial acanhado na encosta do Outeiro do Rosário, até o advento da energia elétrica, no século XX.

 

De acordo com o historiador Francisco A. Ferreira Mendes, do Instituto Histórico de Mato Grosso, a cidade nasceu ligando o antigo “Canto do Sebo” — hoje Praça Conde de Azambuja — ao largo da Igreja, atual Praça da República, através das três primeiras ruas: a de Cima, a do Meio e a de Baixo. Ali, sob a luz precária de lamparinas e archotes, se desenrolavam as noites cuiabanas, enquanto alguns sobrados de terra socada começavam a se destacar no cenário verde da natureza local.

 

A luz das piquiras: a engenhosidade cuiabana 

 

Enquanto na Europa o óleo de baleia era o insumo da iluminação pública, em Cuiabá, a então Vila Real do Senhor Bom Jesus, os moradores lançaram mão do que o meio lhes oferecia: piquiras. Conforme relata o historiador Rubens de Mendonça, cardumes desses peixes eram coletados para produzir o azeite usado nas primeiras luminárias públicas — tijelinhas de barro ou até cascas de laranja azeda cheias de sebo ou azeite, com um pavio de algodão seco ou estopa.

 

Cuiabá Antigamente

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Este rudimentar sistema perdurou até cerca de 1722, quando a chegada dos bandeirantes de Pascoal Moreira Cabral Leme trouxe novos costumes. Posteriormente, candeeiros importados de São Paulo passaram a iluminar a cidade, embora sem regularidade.

 

O Beco do Candeeiro, famoso por abrigar a casa-de-truque de Quim Proença, tornou-se um dos pontos iluminados de referência. Ali, garimpeiros eram atraídos pela luz pendurada na porta, trocando ouro fácil por diversão. O escritor Paulo Setúbal imortalizou o local ao narrar uma aposta entre João Leme, irmão de Pascoal Moreira, e um desconhecido: Leme ganha 16 oitavas de ouro no dado e, enfastiado, joga o prêmio no colo de uma mulher — “É pra você, moça…”

 

Da escuridão à organização da iluminação pública

 

Mesmo após a elevação de Cuiabá à condição de Vila Real, as festas oficiais iluminadas eram exceção, e logo após as celebrações, a cidade voltava à escuridão.

 

Somente em 1874, durante a 19ª legislatura da Câmara, o presidente José Miranda Reis defendeu com veemência a necessidade de um sistema de iluminação pública, citando os riscos à segurança e as dificuldades de circulação noturna. Até então, as ruas eram iluminadas por lamparinas de azeite, mantidas na maioria por particulares, presas a postes ou paredes — as famosas “geringonças”.

 

Um particular ficou responsável pela manutenção das lamparinas mediante contrato com a administração provincial. Dois servidores se encarregavam de acendê-las e apagá-las, sob fiscalização da chefatura de polícia. Curiosamente, o contrato previa economia: nas noites de luar, as lamparinas não eram acesas.

 

Com o tempo, surgiram os combustores protegidos por anteparos de vidro, instalados em pontos estratégicos. As funções de acender, apagar e conservar os lampiões acabaram sendo centralizadas em um único funcionário municipal.

 

Nas calçadas onde não era possível instalar postes, surgiram armações de madeira presas às paredes ou esquinas, com lampiões de vidro — mais uma vez apelidados de “geringonças”.

 

Entre as figuras folclóricas ligadas à iluminação, destaca-se Pai Domingos, homem negro, com o braço amputado, que aos 60 anos vendia velas de sebo de excelente qualidade. Sua passagem era anunciada pelo conhecido refrão: “Corre, Ronda Vera, para lumiar a noite”.

 

O advento do gás acetileno

 

A reivindicação de Miranda Reis começou a ser atendida em 1873, com a assinatura do contrato para instalação de lampiões a gás com o Comendador Manuel Leite do Amaral Coutinho. O sistema atendeu inicialmente as ruas 15 de Novembro, 13 de Junho, Antônio Maria, Cândido Mariano, e algumas praças, como a Ipiranga, o Largo da Mandioca e a Igreja de São Gonçalo.

 

Cuiabá Antigamente

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Em 1905, pela primeira vez, viu-se a “libélula flamejante” do gás acetileno em Cuiabá. Segundo Ferreira Mendes, o padre Antônio Malan, inspetor do Colégio São Gonçalo, mandou instalar um sistema de iluminação interna que percorria todas as dependências, incluindo a capela e a fachada, causando orgulho aos moradores da Rua Nova — hoje Avenida Dom Aquino.

 

Durante o governo do coronel Avelino Antônio de Siqueira (1909-1911), foram instalados dois gasômetros: no Jardim Alencastre e no Jardim Ipiranga. A partir deles, tubos condutores levaram iluminação às principais vias e praças da cidade.

 

Na administração do Intendente Municipal, Coronel Amarílio Alves de Almeida, em 1912, o sistema a gás alcançou o Porto, com um gasômetro instalado nos fundos do quartel (hoje sede da Polícia Militar). A iluminação a gás acetileno perdurou até 1919, quando foi finalmente substituída pela energia elétrica.

 

A hidráulica à beira do rio Cuiabá: o valor da primeira casa de força

 

Com as dificuldades próprias da época, a primeira casa de força foi montada às margens do rio Cuiabá, movida por uma caldeira a lenha que movimentava a lendária hidráulica, responsável tanto pelo fornecimento de água à cidade quanto pela geração de energia. Até mesmo a lenha necessária vinha por via fluvial.

 

Prevista para ser inaugurada em 1919, a usina sofreu adiamentos motivados por questões religiosas e políticas. O construtor João Pedro Dias, adversário político do presidente do Estado, o Bispo Dom Aquino Corrêa, também era protestante — fato que gerou resistência, numa época em que a introdução do protestantismo em Cuiabá provocava desconforto entre os líderes católicos, preocupados com a perda de fiéis.

 

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 João Pedro Dias, acervo Moysés Martins

 

 

Assim, o bicentenário de Cuiabá transcorreu sem a tão esperada energia elétrica, alimentando comentários que ainda hoje recordam esse episódio como um embate entre política, religião e progresso.

 

O sonho da Usina do Rio da Casca

 

Rubens de Mendonça destaca que a primeira tentativa de eletrificar Cuiabá ocorreu no governo de Antônio Corrêa da Costa, que concedeu ao engenheiro Jaques Markwalder o privilégio de explorar o serviço de iluminação e abastecimento de água por 70 anos. A concessão, porém, foi cancelada e sucessivamente passada a outros até que, em 1914, o Estado resolveu assumir o papel de fiscalizador.

 

A verdadeira solução surgiu quando o Presidente do Estado, Manuel de Faria e Albuquerque, por meio da Lei nº 714, de 20 de setembro, concedeu ao cearense João Pedro Dias o privilégio de explorar, por 30 anos, a iluminação pública de Cuiabá e o fornecimento de força motriz.

 

João Pedro Dias construiu a usina geradora do Rio da Casca, aproveitando uma caldeira antiga. Com isso, conseguiu iluminar residências, estabelecimentos comerciais e a Santa Casa de Misericórdia, que pela primeira vez pôde realizar cirurgias noturnas à luz elétrica.

 

 

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Crédito: História da energia elétrica de Mato Grosso 1983 / Usina do Rio da Casca I

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Crédito: História da energia elétrica de Mato Grosso 1983 / Usina do Rio da Casca I

 

 

Ainda segundo Rubens de Mendonça, João Pedro Dias vislumbrou, já naquela época, a construção da futura Usina do Rio Manso — uma proposta que se concretizaria apenas na década de 1980.

 

A chegada definitiva da luz elétrica

 

Em julho de 1909, Cuiabá se rejubilava com a luz viva das lâmpadas de Edison, geradas por máquinas a vapor instaladas na hidráulica da cidade.

 

No segundo mandato do coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, em 1922, houve a reforma do contrato com João Pedro Dias, ampliando o serviço para o abastecimento de água e fixando capital para construção e captação de energia elétrica.

 

Finalmente, em 1924, a Usina Elétrica de Cuiabá foi incorporada ao patrimônio público municipal, encerrando uma longa trajetória de concessões e contratos privados.

 

Um legado iluminado

 

A história da iluminação pública cuiabana é mais que um relato técnico: é a crônica da transformação urbana de uma cidade que, por séculos, viveu entre a penumbra das lamparinas e o fulgor das lâmpadas elétricas. Da engenhosidade do azeite de piquira ao brilho industrial das usinas, Cuiabá se iluminou — e com ela, iluminou também as páginas de sua própria história.

 

 

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*Francisco das Chagas Rocha é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT).

 

 

 

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