Na Rua Sete de Setembro, bem no centro histórico de Cuiabá, a velha sede do IPHAN resistia estoicamente. Fechada há anos, sem um tapume, sem um aviso, sem uma fita zebrada para disfarçar a vergonha. Estava lá, nua e crua, exibindo suas rachaduras como medalhas de guerra — ou talvez de derrota.
O prédio era um testemunho silencioso de uma ironia cruel: a instituição encarregada de proteger o patrimônio cultural brasileiro não conseguiu proteger nem a si mesma. Passava quem quisesse: turistas distraídos, moradores apressados, gatos de rua em busca de sombra. Todos viam, todos sabiam: o IPHAN estava tombando. Só faltava a data oficial.
Foi numa tarde abafada, dessas em que Cuiabá cozinha os desprevenidos, que a tragédia se cumpriu. Primeiro, um rangido triste, como se o prédio tivesse decidido suspirar de vez. Depois, uma parte da parede cedeu, lançando adobes, poeira e anos de descaso no meio da rua.
A poucos metros de distância, uma placa ainda brilhava heroicamente: “Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Um lembrete em letras douradas de que o abandono também pode ser institucionalizado.
o prédio deixou uma última lição: no Brasil, preservar a memória não é apenas restaurar paredes antigas. É também evitar que elas virem poeira
Sem tapumes, sem seguranças, sem alarde: o desabamento foi democrático. Pedaços de história espalhados pela calçada, como quem joga cartas velhas ao vento. Alguns moradores passaram devagar, respeitando o luto daquele que tombou sem decreto. Outros riram discretamente — porque rir é o que resta quando o absurdo é grande demais para a tristeza.
Depois, claro, surgiram as declarações. Falaram em “projetos de restauração”, em “recursos previstos”, em “importância histórica”. Mas o povo da Rua Sete de Setembro, esse já não se ilude fácil: sabia que ali, diante dos olhos de todos, o IPHAN tinha tombado duas vezes — uma no chão, outra na confiança.
No fim das contas, o prédio deixou uma última lição: no Brasil, preservar a memória não é apenas restaurar paredes antigas. É também evitar que elas virem poeira — ainda que, aparentemente, isso exija mais esforço do que parece.
E, enquanto a poeira baixava, Cuiabá seguia seu curso, como quem já viu desmoronar muito mais do que velhas construções.
*Francisco das Chagas Rocha é membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT).
*Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.
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