As atribuições das guardas municipais vêm sendo ampliadas “sem que haja uma estrutura adequada de controle” dos atos das forças de segurança. As polícias já estavam submetidas ao controle externo pelo Ministério Público, mas, na prática, agem “de forma ilimitada em várias ocasiões”, pois o MP “atua de forma deficiente” nesse sentido. Assim, a inclusão das guardas nesse escopo se baseia em “uma crença injustificada”.
É o que pensa o advogado criminalista Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) desde o início deste ano. Sócio fundador de seu próprio escritório no Rio de Janeiro e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele também tem experiência como professor de Direito Processual Penal.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Melchior fez críticas à recente decisão do Supremo Tribunal Federal que expandiu as atribuições das guardas municipais e estabeleceu o MP como responsável pelo controle externo das atividades dessas instituições. Ele ressaltou que o sistema penal já aposta demais no trabalho feito “na ponta” pelas forças de segurança — a maioria dos processos criminais tem origem em prisões em flagrante.
Além disso, enquanto o STF reitera a competência do MP para promover investigações próprias, o presidente do IBCCrim afirma que a absorção dessa função prejudica a boa atuação do órgão, já que algumas promotorias vêm acumulando procedimentos do tipo. Para ele, as investigações do MP deveriam ser excepcionais, mas, na prática, não há um critério objetivo para estabelecer quando elas vão ser instauradas. E algumas ainda tramitam de forma não oficial.
Outro ponto abordado pelo criminalista foi a necessidade de garantir a cadeia de custódia de provas digitais, “para preservar a confiabilidade e a integridade” desses elementos “em um mundo em que a manipulação de arquivos eletrônicos encontra uma grande facilidade”. Melchior sugeriu capacitar os órgãos de persecução penal quanto à forma adequada de lidar com tais provas e atualizar o Código de Processo Penal para torná-lo compatível com o mundo digital.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Quais são os principais objetivos de sua gestão à frente do IBCCrim?
Antonio Pedro Melchior — Os principais objetivos da gestão envolvem a expansão do IBCCrim para o Norte do Brasil, para o Centro-Oeste, para o interior, a partir da concepção de que não é possível falar em um pensamento jurídico e criminal brasileiro sem levar em conta as reflexões da ciência penal e todos os desafios que envolvem outras realidades do país, que não sejam da grande metrópole.
Sou o primeiro presidente, em 32 anos, de fora da cidade de São Paulo. Isso mostra que o IBCCrim hoje tem o amadurecimento institucional que permite a ele convocar criminalistas de todos os campos do Brasil para tratar daquelas matérias que afetam esses territórios.
Outro objetivo é retomar a presença do IBCCrim dentro dos espaços de tomada de decisões no Brasil. O IBCCrim pretende se reaproximar dos tribunais superiores com o objetivo de dialogar a respeito de matérias importantes sobre as quais eles têm se debruçado.
ConJur — Em quais casos o IBCCrim atua como amicus curiae nos tribunais superiores?
Antonio Pedro Melchior — Atuamos em dezenas de ações no STF. Entre as últimas e mais recentes estão a ADPF das Favelas e a discussão em torno da revista vexatória. O IBCCrim também teve presença marcante nos últimos anos nas discussões do Supremo sobre condução coercitiva, prisão decorrente de sentença de pronúncia no júri e limites da presunção de inocência.
O instituto já está preparado para atuar no STF (está se habilitando na ação) diante da notícia de que eles vão julgar os limites do reconhecimento pessoal como meio de prova.
Nesta gestão, vamos aumentar nossa participação nas cortes superiores com foco na atuação no Superior Tribunal de Justiça, que tem tomado decisões que representam conquistas históricas muito importantes para a sociedade brasileira e estão mudando a forma de atuar na Justiça Criminal. O IBCCrim entende que deve estar ao lado do STJ na defesa dessas conquistas.
ConJur — O IBCCrim também elabora notas técnicas e pareceres sobre projetos de lei. Quais questões legislativas são prioridades para o instituto atualmente?
Antonio Pedro Melchior — Na atual gestão, estamos com uma especial atenção para as modificações e o recrudescimento do sistema penitenciário; o emprego de tecnologia e inteligência artificial (IA) nos processos judiciais; e as mudanças na política de segurança pública, com foco na disciplina da força policial. Além disso, nós não perdemos a atenção em todas as propostas de lei que aumentam penas ou criam crimes, bem como modificam as regras de julgamento penal.
ConJur — O STJ vinha impondo limites à atuação das guardas municipais, especialmente com relação às buscas pessoais e domiciliares. Mas o STF caminhou em sentido oposto e decidiu que elas podem fazer policiamento ostensivo comunitário. Qual o impacto dessa decisão nos processos criminais, principalmente de tráfico de drogas, que têm origem em abordagens de guardas municipais?
Antonio Pedro Melchior — O sistema penal está demasiadamente concentrado em uma aposta muito insegura, que é a aposta no trabalho feito na ponta pelas polícias. A maior parte dos processos criminais tem início com autos de prisão em flagrante. Essa discussão tem um impacto profundo na medida em que aponta para um momento da persecução criminal que é muito relevante para o desdobramento contínuo, completo, do procedimento.
É preciso pensar de forma restritiva a competência e a atribuição das polícias brasileiras. A ampliação dessas atribuições incrementa de forma frequentemente abusiva o controle penal. As polícias, que já estavam sob o controle externo do Ministério Público, parecem atuar de forma ilimitada em várias ocasiões.
A aposta dos governantes em armar a guarda municipal, ou torná-la mais um órgão integrante das agências policiais, não deixa de ser um golpe pelo imaginário, porque aposta no braço armado do Estado como forma de resolver problemas que claramente estão vinculados a outras vulnerabilidades.
Cito o exemplo do furto de celulares ou de outros crimes “de rua”, que estão muito mais vinculados a políticas sociais e urbanas do que exatamente a uma aposta no recrudescimento do controle penal pela via da expansão das atribuições da polícia municipal ou guarda municipal, quando não acompanhada do próprio armamento dessas instituições.
É uma decisão política equivocada, que aposta no recrudescimento da força, em vez de pensar em outras políticas e segurança dos direitos. Não resolve o problema.
ConJur — O Supremo também decidiu que as guardas devem ser submetidas ao controle externo da atividade policial feito pelo MP. Qual a viabilidade disso?
Antonio Pedro Melchior — Estamos falando de legitimar a atuação da guarda municipal, expandindo as suas atribuições sem que haja uma estrutura adequada de controle dos atos dessa instituição. Até onde esse controle, em tese, existe, há fragilidades.
Em que pese a decisão se referir ao controle externo da atividade da guarda municipal pelo MP, a compreensão do IBCCrim é que o MP ainda atua de forma deficiente no controle das polícias que deveriam estar a ele submetidas, sendo uma crença injustificada ampliar os órgãos submetidos ao mesmo controle.
ConJur — O STF reconheceu a repercussão geral do caso que discute se a Lei da Anistia também acoberta os chamados “crimes permanentes” cometidos pela ditadura militar, que permanecem até hoje sem solução, como sequestro e ocultação de cadáver. Qual sua visão sobre o assunto?
Antonio Pedro Melchior — A anistia aos agentes da ditadura militar expressa algo muito grave para o Brasil, que é a ausência de uma política de justa memória, que tem cobrado um preço muito alto, como nos atos do 8 de janeiro (de 2023). Mas o fato de ter sido feita uma anistia, quando ela não deveria ter sido realizada, não deveria ser enfrentado com teses jurídicas de consistências questionáveis.
Embora o IBCCrim não tenha uma decisão institucional a respeito desse tema, minha opinião é que não é possível tratar o crime de ocultação de cadáver como um crime de natureza permanente, como aponta a importante doutrina do professor Juarez Tavares. É, na verdade, um crime instantâneo.
Isso não significa concordância com a anistia. O fato de essa anistia ter sido aprovada é uma das causas pelas quais o povo brasileiro não superou, como deveria, o seu passado autoritário. Nunca deveria ter sido feita.
Mas não é torturando a dogmática que vamos alcançar nossos objetivos. É um debate válido e importante no campo político, mas no campo jurídico é preciso não se afastar de princípios importantes.
ConJur — No ano passado, o STF reiterou a competência do MP para promover investigações penais por conta própria. Mais recentemente, a corte invalidou quaisquer interpretações da Lei 12.830/2013 que atribuam a condução de investigações criminais ao delegado de polícia de forma exclusiva. Ou seja, há um movimento do Supremo de reforçar a competência do MP para investigar. Por outro lado, os procedimentos investigatórios criminais (PICs) do MP não são regulamentados por lei. Os parâmetros estabelecidos pelo STF são suficientes para garantir segurança e higidez às investigações do MP?
Antonio Pedro Melchior — A posição histórica do IBCCrim a respeito dessa matéria é de que o MP não deveria ter poder de investigação. De lá para cá, o instituto está aberto a dialogar sobre a maneira como isso foi feito e o que tem sido produzido.
As balizas que o STF oferece para regulamentar a investigação do MP talvez não tenham gerado os efeitos esperados na prática porque, de certa maneira, há dificuldades em conter o poder das investigações criminais como um todo. Os inquéritos policiais também são tocados de certa maneira em infração ao que prevê a lei em vários aspectos.
O MP é uma instituição essencial à democracia, mas a absorção de investigações criminais de forma indiscriminada prejudica a atuação do órgão nos seus mais diversos aspectos.
Essa atuação, uma vez admitida, deve ser, de fato, realizada em caráter excepcional e subsidiário — o que não é, infelizmente, o que tem acontecido.
O problema na prática é que não se sabe exatamente quando vai ser instaurado um PIC ou um inquérito. Na inexistência de um critério objetivo ou de regulamentação dos PICs, a decisão de ser um PIC ou inquérito fica ao alvedrio de um promotor de Justiça.
Alguns procedimentos estão sendo tocados pelo MP sem que as pessoas possam compreender qual é a razão exatamente pela qual não estão sendo tocados pela polícia. Essa arbitrariedade na decisão a respeito do que deve ser um PIC e do que deve ser um inquérito prejudica a adequação de uma investigação criminal no Brasil.
O que era para ser algo subsidiário e excepcional lamentavelmente parece ter virado a regra em algumas promotorias. Esse acúmulo de PICs atrapalha a boa atuação da instituição, que deveria ter um distanciamento da produção dos elementos justamente para ter condição de opinar de forma mais isenta a respeito do trabalho da polícia. Essa é a opinião do instituto.
Pessoalmente, acredito que hoje o mais importante não é mais discutir se o MP pode ou não investigar, mas como isso deve ser feito, em relação a prazo, objeto da investigação e outros critérios e detalhes relacionados à investigação criminal. O momento não é mais de discutir algo que já foi decidido. O momento é de discutir o controle e a disciplina da atividade de investigação do MP.
Vou propor para a diretoria que o IBCCrim dialogue com a Procuradoria-Geral da República e com o MP a respeito de como disciplinar de forma adequada alguns problemas que na prática têm acontecido com os PICs, a exemplo da existência de PICs que tramitam de forma não oficial, entre outros problemas que a “lava jato” demonstrou.
ConJur — O STJ vem traçando algumas diretrizes sobre a devida documentação da cadeia de custódia de provas digitais. Mas ainda não há uma lei ou outras normativas sobre o tema. E os órgãos de persecução penal têm dificuldade de resguardar a prova digital. Quais os prejuízos desse cenário?
Antonio Pedro Melchior — A dificuldade dos órgãos de persecução penal em tratar com a adequada custódia a prova digital gera como impacto não apenas a eventual ilicitude da prova, mas um questionamento a respeito da integridade e da confiabilidade daquela prova digital, que são caraterísticas fundamentais de qualquer prova.
A prova digital, diferentemente da prova física, está sujeita a alterações que não deixam rastros de fácil percepção. Todos estão acompanhando o uso de IA para se produzir vídeos e fotos falsos. Toda a vida social, política e jurídica está atravessada hoje pelo mundo digital e as pessoas de uma maneira geral reconhecem que os dados digitais são modificáveis de forma imperceptível.
Aplicativos promovem a modificação de vozes, a alteração de textos e todos os demais recursos que a tecnologia coloca à disposição das pessoas. Hoje é possível pegar uma mensagem de WhatsApp, tirar a palavra “não” e colocar isso em um processo judicial. A pessoa está dizendo que foi ao local, mas na verdade ela não foi e isso foi alterado. Isso é imperceptível até mesmo por algumas perícias.
Não é possível hoje — da maneira como o mundo digital parece atravessado por toda a capacidade de manipulação — admitir que uma prova seja recolhida e utilizada no processo judicial sem as cautelas necessárias para demonstrar a sua integridade e a sua confiabilidade. A cadeia de custódia quer preservar a confiabilidade e a integridade da prova digital em um mundo em que a manipulação de arquivos eletrônicos encontra uma grande facilidade.
O professor Geraldo Prado, principal nome quanto ao assunto, diz que as cautelas relacionadas à cadeia de custódia buscam assegurar a mesmidade da prova, ou seja, a conclusão segura de que a prova que está sendo usada para condenar uma pessoa é a mesma prova que foi recolhida.
Então, é preciso capacitar os órgãos de persecução penal para que eles possam de forma adequada acautelar a prova com respeito à cadeia de custódia, com o objetivo de demonstrar que aquela prova é íntegra e efetivamente confiável.
Para isso, existem várias determinações ou providências que devem ser realizadas por aqueles órgãos que recolhem a prova em um primeiro momento: o lacre, o controle do encaminhamento à perícia, a forma com que os dados são extraídos, a necessidade de ser calculado o hashcode de um determinado equipamento eletrônico que foi apreendido etc. Tudo isso para evitar questionamentos a respeito da integridade e da confiabilidade daquela prova.
ConJur — Quais procedimentos podem ser previstos em uma eventual regulamentação do tema?
Antonio Pedro Melchior — Todo o processo penal deveria ser reformado para se compatibilizar com o mundo digital, do início ao fim: desde a citação até a busca e apreensão de equipamentos eletrônicos e elementos digitais. O processo penal brasileiro está claramente defasado no que diz respeito ao uso de tecnologias no processo.
A cadeia de custódia das provas, em geral, já está regulamentada no Código de Processo Penal desde a lei "anticrime". Existem ali providências que orientam a recolha de provas, inclusive de provas digitais.
É preciso que haja um detalhamento maior, uma regulamentação específica no que diz respeito a busca e apreensão de equipamentos eletrônicos, processamento dos elementos digitais, extração de dados digitais e cadeia de custódia de provas digitais.
Essa regulamentação preveria a necessidade de realização de determinadas análises técnicas a respeito da idoneidade daquele material, a exemplo do hashcode, que nada mais é do que a identidade digital de um documento. Também promoveria recomendações sobre a maneira de lidar com um equipamento recolhido: o que fazer com o equipamento eletrônico que está ligado, como desconectar equipamentos ligados em rede antes de ele ser recolhido, o que fazer com um aparelho para que os dados não sejam alterados antes da perícia oficial etc. São cautelas e providências que impedem que um arquivo ou dado digital seja alterado pelo simples manuseio de um agente público.
Essas recomendações já foram até mesmo produzidas no âmbito de órgãos técnicos do Ministério Público Federal e existem no exterior: Estados Unidos e Europa possuem regulamentações muito claras a respeito do tema.
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