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opinião Quarta-feira, 16 de Abril de 2025, 06:00 - A | A

Quarta-feira, 16 de Abril de 2025, 06h:00 - A | A

CUIABÁ ANTIGAMENTE

Maria Perna Grossa: A Senhora da Prainha

*FRANCISCO DAS CHAGAS ROCHA

 

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Havia uma casa simples na Prainha, entre o murmúrio das águas do córrego e o vai e vem do centro velho de Cuiabá, onde o sagrado e o mistério se encontravam no colo de uma mulher. Não era uma casa comum, tampouco uma mulher comum. Ali morava Maria Claudia da Costa — a inesquecível Dona Maria Perna Grossa.

 

O apelido, cruel para os que não conhecem as histórias, nasceu da filariose que fazia suas pernas parecerem desproporcionais, como se a própria terra a segurasse, não querendo que partisse. Mas quem a conheceu de verdade, sabia: suas pernas eram raízes — fincadas em um chão sagrado, por onde tantos passaram buscando alívio, respostas e bênçãos. E ela dava. Sem cobrar um centavo. Bastava seguir suas instruções, tomar o chá, a garrafada, engolir as cápsulas artesanais, ou simplesmente escutar o que São Domingos Sávio soprava em seu ouvido.

 

Governadores e juízes, comerciantes e donas de casa, mães desesperadas e filhos desnorteados — todos encontravam caminho até ela. E saíam transformados. “Maria, perdi meu documento!” E ela, com voz serena, dizia onde estava. E estava. “Maria, meu filho tá doente…” Ela benzia, indicava um remédio, rezava. E a febre passava.

 

Seu quintal era pequeno, mas parecia abrigar o mundo inteiro. Crianças correndo, mães de olhos aflitos, gente sentada em bancos improvisados esperando a vez. E mesmo quem não podia entrar — como a menina pequena que ficou na sala, vendo a cortina florida balançar — levava consigo a marca daquele instante sagrado, gravado para sempre na memória e no coração. Porque Dona Maria via além. A menina, por exemplo, foi chamada ao colo e ouviu: “Essa vai ser grande, cheia de bênçãos.” E foi.

 

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Era médium, era benzedeira, era matriarca de um saber ancestral que escapava aos livros e diagnósticos. Diagnosticou médicos, previu tragédias e alegrias, revelou segredos que nem os próprios donos sabiam possuir. Quando alguém mentia, logo se dizia com riso nervoso: “Vou saber lá na Maria Perna Grossa!” E a verdade, acanhada, aparecia.

 

Simples, firme, de paciência curta e espírito afiado. Às vezes brava, às vezes doce. Mas sempre certeira. Curou pernas cambaias, corações despedaçados e almas perdidas. Não com milagres de palco, mas com a fé do dia a dia, do chá amargo, da conversa sincera e do olhar que atravessava a carne.

 

Nos últimos anos, já debilitada, foi para o Tijucal. A cidade tinha mudado, e talvez ela soubesse que seu tempo aqui estava se encerrando. Mesmo assim, a casa continuou cheia — não de corpo, mas de lembrança. De energia. De saudade.

 

Morreu em novembro de 1991, aos 81 anos. Mas sua ausência é cheia de presença. Quem passou por ela, sente até hoje o cheiro das ervas, escuta a voz baixa orientando, lembra da mão quente no peito e da calma que vinha depois.

 

Maria Perna Grossa não era só uma mulher com uma enfermidade, era uma força espiritual, uma mãe de muitos, uma guia silenciosa que usava saia longa, abanava-se com um leque, e sabia. Sabia de tudo.

 

E como disse Shakespeare — que ela talvez nunca tenha lido, mas intuía com perfeição —, há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.

 

E um desses mistérios chamava-se Dona Maria. Que a terra lhe seja leve — embora saibamos que foi ela quem a sustentou, por tanto tempo, com as pernas firmes e a alma luminosa, lá na Prainha.

 

Sua bênção, Dona Maria.

 

 

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*Francisco das Chagas Rocha é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT).

 

 

 

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 *Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.

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waldomiro lopes 16/04/2025

Tive o prazer de conhecê-la quando ainda havia as antigas casas à beira da prainha

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maria de lourdes Fanaia Castrillon 16/04/2025

Maria da perna grossa é uma das personagens da minha tese de doutorado que em breve sairá o livro.

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2 comentários