Arte: Gabriela Güllich.
Por conta do pouco volume de água, os peixes foram vistos, parcialmente, expostos no Rio Aquidauana, em Mato Grosso do Sul.
Os registros de um mega cardume que tentava subir o rio Aquidauana, no distrito de Piraputanga, em Aquidauana, em Mato Grosso do Sul (MS), tomou conta das redes sociais no mês passado. Com aproximadamente 10 quilômetros de extensão, o amontoado de peixes, visto em trechos com pouco volume de água do rio, chamou a atenção dos moradores do município, que integra uma das sub-regiões do Pantanal sul-mato-grossense.
Para entender o fenômeno, ((o))eco consultou especialistas, que disseram que o fenômeno é natural, mas também pode estar relacionado a outros fatores, como as alterações causadas em função da não ocorrência de cheias significativas no bioma, por ocorrer de forma antecipada ao período de piracema na região (de novembro a fevereiro).
O cardume começou a ser acompanhado pela Polícia Militar Ambiental (PMA) de Aquidauana (MS) no dia 10 de agosto.
Nas rasas águas, era possível ver o enorme grupo de peixes completamente exposto – o cardume reunia espécies como curimba (Prochilodus lineatus), cachara (Pseudoplatystoma reticulatum), pintado (Pseudoplatystoma corruscans), entre outras.
Após a constatação da vulnerabilidade e para evitar capturas em massa por pescadores e turistas, os agentes da instituição utilizaram três embarcações para cercar o cardume até o dia 15 de agosto, quando ele alcançou um trecho do rio com mais água. “Ele passou por vários pontos críticos de pesca predatória. Locais de redes, tarrafões, que dizimam cardumes inteiros se você não monitorar”, relata o tenente Anderson Abraão Elias, comandante da PMA no município.
Em quase 30 anos de carreira como efetivo na instituição, Elias conta que essa foi a segunda vez que testemunhou o fenômeno fora do período de piracema. A primeira vez foi no ano passado. “Os peixes resolveram subir o rio num período de estiagem, período totalmente fora dos padrões normais”.
A ((o))eco, ele diz acreditar que as mudanças nos ciclos de cheia do Pantanal podem estar relacionadas à ocorrência testemunhada pela PMA. Na semana passada, levantamento do MapBiomas revelou que, de 1985 a 2021, o bioma assistiu a uma escalada de 285% em suas áreas de agropecuária, sobretudo pastagem.
Além disso, os dados da rede colaborativa apontaram que 2018 continua sendo o último ano em que o Pantanal teve um período de cheia significativo – ainda assim o número de superfície coberta por água e campos alagados foi 29% menor do que o registrado em 1988, quando o MapBiomas registrou a primeira cheia na sua série histórica.
“Antigamente você andava no Pantanal e você percebia que o Pantanal ele tinha mais água. Hoje não, hoje o Pantanal não tem essa quantidade de água que tinha antigamente. Então os rios, por exemplo, com três, quatro anos de estiagem, de seca, o volume de água vai diminuindo.”, comenta Anderson.
Migração é natural
A ((o))eco, Agostinho Carlos Catella, pesquisador da equipe de recursos pesqueiros da Embrapa Pantanal, porém, explica que a migração dos peixes é natural e ocorre em função do nível dos cursos d’água. Durante a cheia, eles costumam ficar nas planícies alagadas do bioma e nas partes baixas dos rios, onde também se alimentam. Ao menor sinal de descida das águas, explica o pesquisador, os peixes se organizam em cardumes e sobem rio acima, em direção às cabeceiras.
“Se o rio baixa um pouco mais cedo, os peixes saem mais cedo. Se o rio demora um pouco mais a baixar, os peixes permanecem nos campos, se alimentando, e descem mais tarde. […] A piracema demora vários meses, esse é o começo da Piracema”, detalha Catella, ao mencionar que o fenômeno sinaliza o início do período de vazante do rio Aquidauana.
Além disso, é importante esclarecer que, antes da migração reprodutiva, os peixes também realizam a migração alimentar, conta Claumir Cesar Muniz, pesquisador do Laboratório de Ictiologia do Pantanal Norte da Universidade do Estado de Mato Grosso (Lipan/Unemat).
Somado a isso, diz ele, também está o fato de que alguns peixes costumam ser os primeiros a iniciar o processo reprodutivo, como é o caso da curimba, espécie vista no mega cardume em Aquidauana. “No mês de setembro, a gente já tem peixe em atividade reprodutiva. E o curimba são os primeiros a começar esse processo, então é algo que não está tão fora do normal”, declara Muniz, ao mencionar que o fenômeno testemunhado no rio Aquidauana pode tratar-se da migração alimentar.
Conforme o pesquisador, também é fundamental o entendimento de que é ainda com nível baixo que os peixes iniciam a sua migração alimentar – ocorrida, geralmente, entre agosto, setembro e outubro. Mas é para a migração reprodutiva – ocorrida entre outubro e novembro – que, de fato, é necessário um maior volume de água. “A desova dos peixes é fundamental que seja realizada quando tenha mais água, pra que esses pequenos ovos e larvas sejam encaminhados para as baías, pras partes marginais, pra evitar a predação”.
Mudanças climáticas
Apesar de natural, existe a possibilidade da migração dos peixes, antecipada à piracema, estar relacionada a outros fatores: “Mudanças climáticas podem influenciar na quantidade de chuva que vai chegar na nossa região, isso vai definir períodos ou mais ou menos secos, e isso influencia diretamente nos processos migratórios dos peixes. Porque fundamentalmente o peixe depende do nível das águas, é o principal fator que condiciona as migrações”, explica Agostinho, ao relatar que os últimos três anos foram mais secos na região. Ao mesmo tempo, ele esclarece que ainda não há elementos conclusivos suficientes para relacionar, diretamente, essas mudanças ao fenômeno visto no Rio Aquidauana.
O apontamento é o mesmo do pesquisador do Lipan/Unemat. Segundo Claumir, outro fator que influencia diretamente o início do processo migratório dos peixes, seja para a reprodução ou alimentação, é a temperatura da água. O tato para avaliar isso, ele conta, já está inserido no DNA dos peixes, e só pode significar uma coisa quando entendido por eles: o aumento de temperatura é o anúncio do período de chuvas.
“Com a questão das mudanças climáticas, sobretudo o aquecimento do ambiente, os corpos d’água ficam quentes mais cedo e os peixes avaliam que está na hora de começar o processo migratório. As mudanças climáticas podem sim ter uma influência, […] em alguns casos até inviabilizando a reprodução dos peixes”, relata o pesquisador.
Ainda nesse cenário, o cardume visto em Aquidauana pode correr o risco de não culminar o seu processo de desova se, durante o seu trânsito, continuar encontrando um rio com nível baixo. “Existem anos em que o conjunto de fatores favorecem uma grande reprodução e não só reprodução, a sobrevivência das larvas, dos peixes que eclodiram naquele ano, e há anos que isso é frustrado ou é muito baixo. É um processo natural, faz parte”, adiciona Catella.
Rios mais baixos e barramentos
As alterações causadas pela ação do homem também repercutem na alteração da paisagem do bioma. Desde 1985, esse uso antrópico do Pantanal foi intenso e alcançou a taxa de 16% – cerca de um sexto do uso da área do bioma – em 2021. Nesse período, o Pantanal passou de 95,58% de cobertura de áreas naturais, para 83,01%.
Os dados também constam no levantamento do MapBiomas citados no início da reportagem. A bacia hidrográfica do Rio Miranda, que abriga o Rio Aquidauana, em específico, foi a que teve a maior perda de floresta (21,7 milhões de hectares) e o maior incremento de áreas de agropecuária (22,3 milhões de hectares), entre 1985 e 2019, aponta levantamento do Instituto Homem Pantaneiro (IHP).
“Os rios, hoje em dia, estão com pouca água, mas principalmente devido a processos antrópicos como assoreamento por exemplo. Isso que a gente observa aqui. E uma outra questão que a gente observa é que como o rio está assoreado, esses cardumes se tornam mais visíveis. Isso é algo realmente preocupante”, comenta Claumir.
Com níveis mais baixos, os peixes ficam expostos durante a migração, mesmo em períodos de pesca aberta, antes da piracema. “A pressão de pesca sobre o cardume pode reduzir a população, diminuindo de forma efetiva a reprodução dessas espécies. A predação se torna maior porque esses peixes estão mais expostos também”.
Para o pesquisador da Embrapa Pantanal, enquanto as principais rotas migratórias dos peixes na Bacia do Alto Paraguai (BAP) continuarem livres, cenas como as vistas em Aquidauana são comuns e devem continuar existindo. Ele ainda cita a importância da lei recém-promulgada no Mato Grosso, que proibiu a construção de usinas no Rio Cuiabá, para a garantia desse fluxo — feito que ocorreu após intensa mobilização popular pela preservação do curso d’água, que é considerado um dos principais abastecedores hídricos do Pantanal.
“Isso reforça a decisão de conservar os peixes, a pesca e o turismo no Pantanal. […] Exatamente porque o Rio Cuiabá é um dos principais rios em termos de volume d’água, de produção pesqueira, de número de ovos produzidos em todo o Pantanal, e é um rio chave. Se a pesca e a produção de peixes colapsar no Rio Cuiabá todo o Pantanal vai ser afetado e não só aquela região”, comenta Agostinho.
Antecipadas ou não ao período de piracema, o fenômeno testemunhado no Rio Aquidauana representa a importância do fluxo dos peixes entre a parte alta da BAP, também chamada de Planalto, e a parte baixa, onde está a Planície pantaneira. “Eles precisam sair das partes baixas, migrar por meses e centenas de quilômetros até as partes altas para se reproduzir”, finaliza.
Imagem cardume peixes em Aquiadauna (MS):
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