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opinião Sexta-feira, 04 de Março de 2022, 07:00 - A | A

Sexta-feira, 04 de Março de 2022, 07h:00 - A | A

OPINIÃO

Por que os poconeanos são apreciadores de piranha?

*ANDRÉ L. RIBEIRO-LACERDA

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Quando fiz uma pausa para almoço na última vez que fiz minha mudança de um apartamento para uma casa, levei a minha principal ajudante, uma diarista que nos prestava serviço com certa regularidade, a um shopping center e, depois de mostrar a ela as opções de cardápio, perguntei: então, o que você quer comer? Ao que ela respondeu imediata e prontamente: “arroz com feijão e carne”. Tem certeza? Reforcei o convite para que ela experimentasse algumas das coisas gostosas que eu havia apresentado. “Sim, eu tenho certeza”, ela respondeu.

 

De certa maneira, essa situação contrasta com a nossa condição humana de seres onívoros, pois diferentemente dos outros animais, nós podemos comer qualquer coisa que a natureza possa nos oferecer.

 

Quer dizer, teoricamente podemos comer qualquer coisa. Pois, se colocarmos um indiano, um brasileiro e um argentino em uma floresta eles procurarão alimentos diferentes, embora possam objetivamente encontrar as mesmas opções alimentícias.

 

Como disse Michael Pollan em seu livro O Dilema do Onívoro, ser um generalista tem uma grande vantagem, mas também apresenta um grande desafio. Se, por um lado, permite que os seres humanos consigam ocupar qualquer ambiente, o que na sua condição de onívoro também oferece os prazeres da variedade, por outro, o grande leque de opções pode desembocar em uma espécie de visão maniqueísta da comida, que divide as opções alimentícias entre coisas boas e coisas ruins para comer.

 

Durante a maior parte de sua história, nossos ancestrais hominídeos foram forrageadores, colhendo frutas e verduras onde quer que pudessem encontrá-las, caçando animais selvagens ou vasculhando os restos daqueles que morreram ou foram mortos por outros. Somente nos últimos 10 000 a 12 000 anos ou a última pequena fração de 1% da história dos hominídeos, a agricultura e outros modos de subsistência e outros tipos de sociedades evoluíram.

 

Assim, a caça e a coleta serviram à humanidade por muito tempo. A mudança para uma dieta onívora parece ter contribuído para vários novos elementos importantes na sociedade hominídea primitiva. Por exemplo, a crescente dependência da carne parece ter levado ao início de uma divisão de trabalho entre os sexos. Por causa das demandas da gravidez, lactação e cuidados com os filhos, as fêmeas humanas eram prejudicadas nas atividades de caça.

 

Patrick Nolan e Gerhard Lenski convidam a uma reflexão: por que nas sociedades de caçadores e coletores os homens são caçadores e as mulheres coletoras? Vale a pena consultar os diversos trabalhos de cientistas sociais que tentam responder a essa questão.

 

Mas, o que tudo isso tem a ver com Poconé?

 

Entre 2016 e 2017 desenvolvi uma pesquisa com pescadores profissionais do pantanal norte. Entrevistei pescadores das colônias de Santo Antônio do Leverger, Cáceres, Barão de Melgaço e Poconé e uma curiosidade me chamou atenção. Quando estava entrevistando esses pescadores lá na colônia deles, em Poconé, muitos poconeanos, dos mais diferentes estratos sociais apareciam para comprar piranha.

 

Compradores chegavam caminhando, de bicicleta, carro popular e carros mais requintados. Ou seja, a piranha parece ser um alimento apreciado pelos mais diferentes estratos socioeconômicos da sociedade poconeana.

 

Considerando que as escolhas alimentares humanas se baseiam nos sistemas culturais de suas sociedades, não parece haver nada de curioso aqui, mas como eu estava pesquisando outros lugares, um olhar comparativo levantou a pergunta do título do artigo.

 

É uma hipótese, mas parece que apreciar a piranha é um gosto alimentício que tem a ver com a sociedade poconeana.

Em uma amostra de quinhentos pescadores entrevistados, quando eu classifiquei os três peixes mais pescados nas quatro cidades do pantanal norte, eles apareciam assim: (1) Em Cáceres -o pacu era o mais pescado, depois vinham praticamente na mesma posição o piavuçu, o pintado e a piranha; (2) Em Barão de Melgaço -o pacu-peva era o mais pescado, depois o pintado e em terceiro e quarto lugar, praticamente empatados o pacu e a piranha; (3) em Leverger, o piau era o mais pescado, depois o pacu-peva e em terceiro lugar o pacu; (4) em Poconé – a piranha era o peixe mais pescado, depois o pacu e numa posição mais distante, praticamente empatados o pacu-peva e o pintado.

 

Os pescadores têm uma escala de prestígio, de preferência de qual peixe capturar. Se por um lado coincide com o gosto hegemônico que os moradores da baixada cuiabana dão ao pintado e ao pacu, por outro lado, não deixam de ser realistas quando dizem que preferem pescar aquele peixe que aparecer.

 

O que chama atenção em Poconé é que os pescadores parecem refletir um gosto da população. Infelizmente ainda que não coletei dados a esse respeito. É uma hipótese, mas parece que apreciar a piranha é um gosto alimentício que tem a ver com a sociedade poconeana.

 

Com peixes mais nobres acessíveis – talvez não tanto em termos de disponibilidade - o que explicaria esse gosto específico?

 

Se fôssemos mencionar as variáveis relacionadas aos peixes, poderíamos elencar o preço, o sabor, o valor nutricional, a aparência e a higiene. Em relação aos indivíduos que escolhem o peixe, variáveis socioculturais, econômicas e psicológicas. Sabemos que o ato alimentar segue regras sociais, como por exemplo, a maneira como os alimentos são preparados, a montagem dos pratos, e os rituais das refeições, ou seja, tudo isso contribui para que o ser humano se identifique com o alimento.

 

Como se deu a escolha dos poconeanos pela piranha?

 

Com um repertório razoavelmente diverso e mais amplo de peixes que são considerados mais nobres, por que o gosto pela piranha?

 

Como esse gosto conseguiu atingir diferentes status socioeconômicos? 

 

Perguntas que merecem uma boa pesquisa e que podem ajudar a entender um pouco do dilema dos onívoros na baixada cuiabana.  

 

*André L. Ribeiro-Lacerda é sociobiólogo, psicólogo e professor de sociologia na UFMT, campus Cuiabá.

 

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