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opinião Sexta-feira, 11 de Março de 2022, 07:00 - A | A

Sexta-feira, 11 de Março de 2022, 07h:00 - A | A

OPINIÃO

Perto do osso a carne é mais gostosa

*ANDRÉ L. RIBEIRO-LACERDA

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Imagens de filas de pessoas esperando por ossos oferecidos por açougues de Cuiabá, Brasília, Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis percorreram o Brasil no ano passado. Em Florianópolis, a foto de um açougue que dizia “ossos são para vender e não para doar” causou polêmica. O Procon de SC fez um apelo para que os comerciantes dessem os ossos.

 

Comovidas, muitas pessoas doaram carne para serem distribuídas nas filas de alguns dos açougues do Brasil.

 

Vários artigos nos principais veículos de comunicação brasileiros apresentaram as filas pela busca de ossos como um fenômeno anômalo, uma prova de que estaríamos diante de uma situação social bizarra provocada pelo aumento da miséria em nosso país.

 

Meu único tio materno vivo foi açougueiro e proprietário de açougues por 40 anos. Eu o vi, muitas vezes, vender e doar retalhos de carne e ossos. Ele fornecia retalhos de carne para vendedores de churrasquinhos que ficavam na calçada que dá acesso ao Conjunto Nacional em Brasília.

 

Era comum, durante as refeições, vê-lo chupando ossos e certa vez perguntei por que ele fazia aquilo, já que era tão conhecedor da carne bovina, e ele me respondeu: “meu filho, perto do osso a carne é mais gostosa”.            

 

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura de 2015, o consumo mundial de carne é liderado pela carne suína e em segundo lugar vem a carne de frango e a carne bovina. O Brasil é o segundo país que mais consome carne bovina no mundo, atrás dos EUA.  Os brasileiros consumiram de 36 a 38 kg de carne por habitante/ano durante o período de 2000 a 2010.

 

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Entre nós, os cortes preferidos são o coxão mole, o patinho e a alcatra. Apesar de o Brasil ser considerado um país em desenvolvimento, seu consumo de carne bovina atinge patamares de consumo das nações mais desenvolvidas.            

 

A dissertação de Taís Ávila, defendida em 2016 na UFPR, traça um perfil do consumidor de carne bovina no Paraná e em Santa Catarina. A frequência do consumo está entre 3 e 4 dias por semana e geralmente é a mulher quem compra a carne, com exceção da cidade de Florianópolis, local em que os homens é que se encarregam da tarefa. O consumo tende a aumentar nos fins de semana e feriados. A classe média e média alta tende a comer mais carne em casa do que quando sai, enquanto a classe baixa tende a comer carne bovina tanto em casa quanto quando está fora de casa.

 

Diante de tais dados, pode-se dizer que consumir ossos é um fenômeno socialanômalo, enraizado apenas em situações socioeconômicas de miseráveis?

 

Uma sociobiologia do consumo de carne não parece sustentar hipóteses nesse sentido.            

 

A venda de carne com osso, como um retalho, ou só osso, parece ser tradicional em açougues de todo o Brasil. O argumento é sustentado pelo presidente da associação dos frigoríficos independentes de SC e parece encontrar respaldo em vários pratos brasileiros que tem osso como componente.

 

Do ossinho com mandioca, banana e queijo curado feito na região de Dourados-MS, passando pelo ossinho cozido com mandioca e banana da terra feito pelos habitantes de Cáceres-MT, até aos caldos feitos em vários lugares do Brasil e a feijoada cuiabana. Talvez a presença de proteínas, sais minerais e cálcio possam ajudar a explicar o “gosto” brasileiros pelos ossinhos.            

 

Em geral, os ossos consumidos podem ser classificados em dois grupos: os ossos do cérebro, ossos tubulares, dentro dos quais existe uma medula óssea considerada deliciosa e saudável e os ossos de açúcar, cartilagens que contém muitas substâncias benéficas para a saúde. Alguns gostam de morder cartilagem; outros de comer medula óssea. Sopas, caldos e cozidos exploram os dois tipos de ossos.            

 

A pandemia parece ter mudado o comportamento de açougues pelo Brasil afora com o aumento do preço da carne. Em alguns lugares a demanda por doação aumentou muito; em outros, os açougues que cediam ossos passaram a vendê-lo. É o que tem acontecido em Fortaleza-CE, por exemplo. Lá, a comercialização dos ossos os diferencia em “ossos de primeira” e “ossos de segunda”. Os ossos “de primeira” custam em torno de vinte e cinco reais o kg e os “de segunda”, dois reais e cinquenta.            

 

Em terminologia de açougue, o que conhecemos como carne é o nome que se dá à carcaça completa do bovino, incluindo tecido muscular, conjuntivo, gordura e ossos. Parafraseando o químico francês Lavoisier, do boi nada se perde, tudo se aproveita.

 

Uma vez calcinados, os ossos também são usados para fabricação de porcelana e de cerâmica. Em usinas de açúcar, utiliza-se carvão de osso para alvejar e refinar ingredientes que usamos em doces, biscoitos, tortas e bolos. Ferver os ossos com carne é uma técnica culinária comum utilizada por populações humanas modernas e pré-históricas em todo o mundo.

 

Pesquisas de campo realizadas em 1997 pelos arqueólogos Karen Lupo e Dave Schmitt entre os Hadza, caçadores e coletores da África oriental, são ilustrativos a esse respeito. A fervura de ossos com carne é um processamento de alto custo, mas facilita a remoção da gordura óssea, aumenta a eficiência com a qual a carne residual pode ser retirada dos ossos. Os Hadza processam algumas de suas presas de médio e grande porte, retiram a maior parte da carne, medula de alguns elementos e transportam a carne e alguns dos ossos para seus acampamentos onde são frequentemente processados por fervura.            

 

Visualizar as filas de indivíduos que buscam ossos doados ou que tentam comprá-los como um fenômeno socioeconômico patológico, no sentido de que retrata uma situação de miséria pode ser um tipo de abordagem econômica do consumo de carne bovina no Brasil.

 

No entanto, quando vistos sociobiologicamente, podem ser caracterizados não apenas como um fenômeno de estratificação social, no sentido da identificação das baixas posições dos status socioeconômicos daqueles que fazem parte dessas filas e de suas situações de fragilidade, mas como um fenômeno que não é anômalo e nem excepcional enquanto consumo, como muitas das matérias sobre as filas de ossos deram a entender.  

 

*André L. Ribeiro-Lacerda é sociobiólogo, psicólogo e professor titular de sociologia da UFMT, no campus de Cuiabá-MT.

 

 *Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.

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