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opinião Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2022, 07:00 - A | A

Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2022, 07h:00 - A | A

OPINIÃO

Não competirás

*ANDRÉ L. RIBEIRO-LACERDA

 

 

Na década de 1980, o cineasta polonês Krysztof Kieslovski promoveu, na televisão polonesa, uma série de dez filmes com duração de sessenta minutos. Neles, Kieslovski abordou os dez mandamentos e, por isso, chamou a série de “O Decálogo”. Dois deles foram depois transformados em longas metragens: não matarás e não amarás.

 

Em não amarás a mensagem pode ser resumida mais ou menos nos seguintes termos: não amarás, mas caso ames, experimentarás a infelicidade e a solidão. No mundo de hoje, em que a palavra de ordem é incluir, em que a desigualdade social só tem sido abordada enquanto fenômeno negativo, em que a presença de hierarquia é malvista, em que a competição é desencorajada, pode-se dizer, inspirado emKieslovski, que não competirás é quase um mandamento dos processos sociais.

 

Na vida social, os animais, e dentre eles os seres humanos, quando se relacionam, formam padrões de comportamento que são chamados de processos sociais. Existem processos sociais que geram cooperações e processos sociais que geram divergências. Competição e conflito são processos dissociativos, ao contrário da cooperação, um processo social associativo. Existem muitos tipos de competição, mas em geral ela significa a luta pela recompensa de recursos limitados. Dinheiro, amor, bens, status, poder são exemplos desses possíveis recursos.

 

Na competição, os indivíduos ou grupos pretendem obter uma recompensa superando seus rivais, mas não eliminando-os como no conflito. Mas, será que é possível não competir por algum recurso? Seria possível desviar disso?

 

A resposta é não.

 

A competição é ubíqua, ou seja, está presente em todas as sociedades e grupos e baseia-se na condição inevitável de que é muito difícil as pessoas satisfazerem todos os seus desejos.

 

A competição pode ser pessoal, por exemplo, quando dois adversários políticos disputam uma eleição ou pode ser impessoal, como quando indivíduos concorrem em um concurso público, mas pessoal ou impessoal é conduzida segundo parâmetros que têm como objetivo superar o rival e não o eliminar.

 

A competição funciona como um mecanismo de alocação de recursos. Pode-se discutir outros mecanismos de se racionar recursos. Pode-se distribuir recursos escassos por um sorteio de loteria, ou distribui-los igualmente entre todos, mas esses mecanismos sempre criam dificuldades.

 

As necessidades são altamente discutíveis, qualquer sistema de prioridade será questionado, porque, em geral, nenhuma pessoa ou grupo está disposto a aceitar que outra pessoa ou grupo seja considerado mais merecedor. Portanto, embora seja um dispositivo malvisto, a competição funciona e elimina boa quantidade de argumentos.

 

Embora os brasileiros sejam, hoje, desencorajados à competição, ela está presente em suas vidas desde que eles nascem.

Se antes havia uma hierarquia em que o topo da carreira era atingido apenas por alguns, agora pode ser atingido por todos.

Ser filho de pais ricos não torna o indivíduo imune a competição. Nas universidades, a competição é discutida teoricamente nas aulas de ecologia e de teoria econômica, mas, de resto, é vista como um processo social que deve ser evitado por causa de algumas de suas consequências negativas. Nas carreiras de docentes das universidades públicas, muitos critérios de promoção por antiguidade que poderiam representar obstáculos a promoção por esforços competitivos diretos foram substituídos pelo critério do tempo com pontuação considerada baixa, para que todos tenham acesso às promoções.

 

Se antes havia uma hierarquia em que o topo da carreira era atingido apenas por alguns, agora pode ser atingido por todos.

 

Substituíram uma pirâmide por uma escada. Antes a competição era desencorajada porque muitas metas ocupacionais não podiam ser alcançadas, agora é porque todos podem alcançá-las com esforço médio.

 

A competição enquanto estímulo tem limitações. As pessoas podem desejar não competir. Eis uma primeira limitação. Se alguns vão ganhar e outros vão perder e eu perdi duas vezes, vou me esquivar de participar do jogo. Embora a competição estimule aqueles que ganham com frequência, ela desencoraja aqueles que quase sempre perdem, pois, essas pessoas deixam de tentar, já que terão que lidar com o sofrimento sucessivo de encarar o fracasso. O adolescente que não consegue atrair a atenção do gênero desejado, o desempregado que vive sendo reprovado em entrevistas para um novo emprego – todos eles podem desistir, podem não querem mais tentar, apesar de saberem que ninguém ganha ou perde sempre.

 

A competição parece ser estimulante somente em certos tipos de atividades. Em tarefas simples e rotineiras, a competição é produtiva, mas em tarefas mais complexas e em que a qualidade do produto é muito avaliada, a competição não é tão produtiva. Em trabalhos intelectuais, por exemplo, a produtividade dos cooperadores é maior do que entre aqueles que só competem. Mas, se a cooperação faz a diferença na produção acadêmica, a competição também não deixa de estar presente seja no nível individual, seja em nível de grupo nas universidades.

 

Outra limitação da competição é que ela pode degenerar em conflito. Desistir de uma recompensa valiosa reivindicada por um rival mais habilidoso não é fácil. Mas, embora tenha limitações, a competição pode ser e, muitas vezes é, um processo culturalmente padronizado que difere em grau de sociedade para sociedade.

 

Em sociedades como os Kwakiutl a competição era encorajada. Eles trabalhavam arduamente para acumular riqueza, que era usada para estabelecer status e não para proporcionar conforto material. E a competição por status atingia seu auge no famoso potlach, quando os chefes e as famílias com mais prestígio se confrontavam para ver quanto podiam dar ou destruir. Sim, uma família Kwakiutl podia passar a vida inteira acumulando riqueza e destruí-la em um único potlach.

 

Competir não é necessariamente um processo social mutuamente distinto de cooperar. Eles se sobrepõem de diversas maneiras. Em nossa sociedade, muitas pessoas cooperam entre si em grupos que competem com outros grupos.

 

A competição enquanto processo social não vai desaparecer do comportamento e da vida social humana. Ao invés de encorajar os muitos esforços para mitigá-la, pode-se pensar nela como uma aliada produtiva que acompanha os seres humanos em sua jornada através da história.

 

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*André L. Ribeiro-Lacerda – É sociobiólogo, psicólogo e professor titular de sociologia na UFMT, campus Cuiabá.

 

 

 

 

 *Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.

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