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articulistas Domingo, 27 de Junho de 2021, 12:03 - A | A

Domingo, 27 de Junho de 2021, 12h:03 - A | A

OPINIÃO

Sem sapatos pretos

*SUELME FERNANDES

 

Há alguns dias um homem negro foi vítima de racismo num shopping de Cuiabá, e o caso virou notícia nacional, causando inúmeras repercussões. Incluindo uma campanha de boicote dos consumidores.

Selecionei alguns comentários das redes sociais para demonstrar como reagiram às pessoas ao episódio ocorrido.

A maioria se indignou por óbvio, mas não faltaram as justificativas atenuantes para o ocorrido: “Caso isolado; A loja não foi culpada e nem os seguranças; Eles estavam fazendo seu trabalho; Falta treinamento dos seguranças”.

Fiquei refletindo sobre essas afirmações, principalmente no argumento recorrente da falta de treinamento, sobre o qual falaremos.

Em nota o Shopping e a loja como de praxe, afirmam que não é racista, lamenta o episódio e que tem treinado suas equipes para que episódios como esse não ocorram e blá, blá, blá.

A resposta segue o manual básico do senso comum das situações de crise, a indiferença, apostando no esquecimento da plateia.

Nada de novo, afinal o que os shoppings acreditam ser política antirracista, quase sempre se resume em alguns banners com atores negros e frases de efeito nas peças publicitárias na linha do “politicamente correto”.

Por considerar o racismo um problema estrutural, somente a educação de qualidade para todos, e ao longo da vida pode desconstruir esses estigmas conscientes, inconscientes.

Portanto, os tais treinamentos que se refere as notas prontas de imprensa servem apenas como corta luz ou para inglês ver, são paliativos.

A desconstrução do estigma de cor demanda tempo e o envolvimento de toda sociedade, pois trata-se de uma ideologia com raizes profundas, herança de uma sociedade escravista colonial e aristocrática que resiste ao tempo.

O compromisso ético do combate ao racismo tem que ser feito de maneira sistêmica e programática. Isso é muito mais do que um mero treinamento no curso preparatório de vigilantes de 40 hs ou da entrevista rápida para o emprego de uma vendedora.

Começa com políticas inclusivas de compliance que preveja cotas mínimas raciais nas contratações de pessoal nas empresas; Punição para quem praticar discriminação racial; Implantação de um programa formativo de auto reconhecimento e auto estima dos colaboradores que quase sempre são também negros.

E que esse programa de gestão das empresas envolva também os prestadores de serviços terceirizados e condôminos do shopping.

Esses valores civilizatórios, respeito às diferenças e cultura de paz, devem inclusive constar na missão e visão de futuro das empresas. Criando uma cultura verdadeiramente antirracista.

O cidadão agredido era um funcionário público federal, nível superior, consciente de seus direitos e resolveu depois da violência sofrida não baixar a cabeça e aceitar o ocorrido. Pois como diz a canção “baixou a cabeça já era!”.

No entanto, nas periferias, diariamente os negros e negras pobres já se acostumaram a andarem como suspeitos, nas blitz’s de moto, nas lojas, como transeuntes nas ruas e nos locais de trabalho.

Curiosamente o motivo dessa violência toda foi um “suposto” furto de um par de sapatos. Usar sapato no Brasil escravista era uma das distinções e privilégios dos brancos, pois os negros eram proibidos de usá-los.

Os negros são ensinados logo cedo nas famílias ou aprendem nas ruas da pior maneira possível que terão que “conviver” com olhares de julgamentos e desconfiança por onde forem, independente da condição social que estiverem.

Essa é a face mais cruel do racismo estrutural à brasileira, as expiações alheias. Se processa na psicologia do detalhe, nos soslaio, de maneira silenciosa e covarde.

Começa com os olhares e termina com as agressões físicas.

Curiosamente o motivo dessa violência toda foi um “suposto” furto de um par de sapatos. Usar sapato no Brasil escravista era uma das distinções e privilégios dos brancos, pois os negros eram proibidos de usá-los.

Andar descalço se tornou uma das marcas mais cruéis do estigma de cor na escravidão brasileira.

Parece que mesmo tendo passados 133 anos da Abolição da Escravidão nesse país, pouca coisa ou quase nada mudou conceitualmente de lá para cá!

Não foram apenas os empresários das lojas, os guardas, a vendedora, as pessoas que viram a agressão e nada fizeram que fracassaram nesse episódio. Fracassou também nosso sistema educacional, nossa humanidade, bom senso e também nosso projeto de civilização brasileira.

 

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*SUELME FERNANDES. Mestre em História pela UFMT. Siga no Instagram.

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Márcia Rodrigues 27/06/2021

Infelizmente esse fracasso se arrasta há muito tempo e absolutamente ninguém toma providência à respeito. Aliás, RESPEITO é algo tão importante e sua escassez hoje em dia é gritante, de cortar o coração. Parabéns pelo texto Suelme!

DEUZENI PEREIRA DE SOUZA 27/06/2021

Excelente explanação, caro Suelme. Parabéns pelo artigo, como sempre, vc vai no cerne da questão.

GIRLENE APARECIDA RAMOS 27/06/2021

"Esses valores civilizatórios, respeito às diferenças e cultura de paz, devem inclusive constar na missão e visão de futuro das empresas. Criando uma cultura verdadeiramente antirracista." Não concordo com esta parte do texto....penso que :::às diferenças???!!!... então ser negro é defeito??? O racismo está introjetado nas bases da sociedade brasileira que é patriarcal, racista, homofóbica, com uma elite cretina acostumada a fazer de tudo para manter os negras e pobres na zenzala. Sinto-me orgulhosa de pessoas que se levantam e vão à luta contra o racismo e a discriminação. No mais meu amigo, concordo com você no restante do artigo.

Luana 27/06/2021

Adorei a referência à distinção entre negros e brancos pelos sapatos! Sensível às marcas históricas, como sempre!

Peres 27/06/2021

Texto muito bom e com uma reflexão bem profunda. Parabéns mais uma vez.

5 comentários

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