Nas terras quentes do coração da América do Sul, entre rios, florestas e aldeias, desenhava-se um embate que ia além dos mapas e das linhas telegráficas. Era um conflito de crenças, valores e projetos de civilização.
De um lado, Cândido Mariano da Silva Rondon, positivista, defensor da ciência, da razão e dos direitos indígenas. Do outro, Dom Aquino Corrêa e os missionários Salesianos, que empunhavam a cruz como instrumento de conversão e redenção realizavam o chamado sonho de Dom Bosco de catequizar os indígenas.
Rondon via os povos originários como detentores de saberes milenares, com direito à própria cultura, idioma e espiritualidade. Já Dom Aquino acreditava que a salvação da alma e a moral cristã eram os únicos caminhos para o progresso. “Não há ordem sem Deus, nem progresso sem batismo”, afirmava o bispo, fundador da Academia Mato-grossense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, em 1919.
Na década de 1930, o antropólogo Claude Lévi-Strauss testemunhou o rastro desse embate. Ao visitar Dom Aquino, ficou estarrecido com suas palavras carregadas de preconceito sobre os indígenas: “Esses preguiçosos devem ser chamados à santidade do trabalho”. Para Lévi-Strauss, a catequese imposta não era caridade, mas uma violência sofisticada que anulava identidades.
Rondon criticava abertamente o projeto missionário, que considerava uma forma de colonização cultural. Forçar os indígenas a abandonar seus rituais, línguas e modos de vida, impondo a moral cristã e a organização social europeia, era, para ele, uma afronta à dignidade dos povos. “Civilizar não é converter. O Estado não tem religião, deve proteger, não catequizar”, escreveu ao Ministério da Guerra, protestando contra as doações de terras públicas às missões em locais como Sangradouro e Meruri.
Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, descreve como a simples alteração do traçado circular das aldeias Bororo pelos padres, substituindo-o por um modelo retangular cristão, gerava uma ruptura profunda na vida social e espiritual dos indígenas. “A cruz e o arado substituíram a floresta, trazendo o esquecimento”, registrou. Ao contrário de Rondon e Aquino, Strauss era contra todos os tipos de contatos externos com as etnias.
Livres da cruz, livres da espada e, sobretudo, livres para escolherem seus destinos, sem a tutela alheia.
Os encontros entre Rondon e Dom Aquino, embora pautados pela diplomacia, carregavam tensão. Enquanto o bispo defendia que “negar Cristo é negar-lhes a dignidade de homens civilizados”, Rondon rebatia com firmeza: “Negar sua cultura, seus deuses e sua história é indigno da República”.
Cada aldeia tornou-se palco de uma disputa silenciosa. De um lado, as capelas e os internatos e oficinas dos Salesianos; do outro, o sonho de Rondon por escolas públicas que ensinassem o português, sem sufocar os idiomas ancestrais. Disputava-se não apenas o corpo indígena, mas sua memória, sua alma e seu futuro.
No fundo, o que estava em jogo era a própria definição de Brasil: uma nação laica, plural, feita de diferenças, ou um projeto civilizatório assentado na cruz e na catequese?
Entre hóstias e teodolitos, entre rosários e postes telegráficos, desenhava-se o mapa da disputa pelo destino dos povos originários.
O legado desse embate ecoa até hoje, quando ainda se discute quem deve decidir sobre os destinos dos povos indígenas: o Estado, as igrejas, as ONGs ou as próprias comunidades.
Rondon e Lévi-Strauss, à seu tempo, valores e maneiras, nos alertam: a verdadeira civilização existe quando os povos indígenas são livres. Livres da cruz, livres da espada e, sobretudo, livres para escolherem seus destinos, sem a tutela alheia.
*Suelme Fernandes é mestre em história e membro da IHGMT.
*Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.
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