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variedades Quinta-feira, 19 de Junho de 2025, 15:54 - A | A

Quinta-feira, 19 de Junho de 2025, 15h:54 - A | A

BEBÊ REBORN

Entre o consolo psicológico e a mercantilização do afeto

Redação

 

– Foto: Freepik/Pikaso

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A mercantilização desses bonecos revela uma sociedade que busca satisfação imediata sem os sacrifícios inerentes às relações reais

 

 

O mercado de bebês reborn, bonecos hiper-realistas que simulam recém-nascidos, cresce globalmente, gerando empregos e até disputas judiciais. Por trás da aparência perturbadora para alguns, escondem-se questões profundas sobre carência, luto e a busca por preencher vazios emocionais. Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP, analisa as raízes psicológicas desse fenômeno e seus desdobramentos numa sociedade cada vez mais individualista.

 

O que é um bebê reborn?

 

Bebês reborn são bonecos fabricados com detalhes minuciosos para imitar recém-nascidos reais. Artistas especializados aplicam múltiplas camadas de tinta para criar tons de pele realistas, adicionam veias visíveis, cílios implantados um a um e até mesmo cabelos inseridos fio por fio.

 

Os materiais utilizados variam entre vinil e silicone, mas o que realmente os diferencia é o trabalho manual minucioso. O resultado final é tão detalhado que, à primeira vista, pode ser confundido com um bebê de verdade. Inicialmente criados como peças de colecionador, ganharam novo significado ao serem “adotados” como substitutos de crianças por adultos, especialmente mulheres.

 

O nome reborn, portanto, não é aleatório: simboliza a transformação de um objeto inanimado em algo que parece ter vida, despertando reações intensas – seja fascínio, desconforto ou uma mistura de ambos.

 

Motivações psicológicas por trás da “adoção”

 

Dunker comenta: “Todo desejo humano está referido a uma falta. Quando essa falta adquire a feição de um objeto em particular, um objeto com sensibilidade, dotado de presença, dizemos que o desejo entrou num modo de funcionamento, chamado demanda. No caso dos bebês reborn, a gente pode então detalhar diferentes funções ocupadas por esse objeto”. Segundo a psicanálise, o desejo humano está ligado a uma falta. No caso dos reborn, esse objeto pode assumir três funções distintas: substituição lúdica; fetiche; negação do luto.

 

Christian Ingo Lenz Dunker – Foto: Reprodução via Facebook

 

 

Segundo Dunker, a substituição lúdica é a função mais próxima de uma brincadeira simbólica, em que o boneco permite vivenciar aspectos do cuidado materno sem os desafios reais. Mulheres (e eventualmente homens) usam o reborn para experimentar afetos ligados à maternidade, como embalar ou vestir um “bebê”, em um processo semelhante ao das crianças que brincam de casinha. O psicanalista ressalta que, quando saudável, essa prática funciona como um ritual de transição, mas pode se tornar problemática se substituir completamente as relações humanas.

 

No caso do fetiche, o reborn deixa de ser um símbolo e vira uma peça central para a estabilidade emocional. Dunker explica que, nesses casos, o boneco opera como um fetiche – algo sem o qual a pessoa sente que não pode viver. Diferentemente da função lúdica, o reborn não representa um bebê, mas sim a ideia de completude. É uma relação metonímica: o objeto não substitui a criança, mas sim a ausência de algo que a pessoa acredita precisar para ser feliz. O perigo, alerta o psicanalista, é a dependência de um vínculo que nunca se realiza plenamente, já que o boneco, por mais realista, permanece um objeto inanimado.

 

A negação do luto, a função mais complexa, segundo Dunker, surge quando o reborn vira um mecanismo para evitar a dor de uma perda irreparável – seja a morte de um filho, um aborto espontâneo ou a impossibilidade de engravidar. Ao “adotar” o boneco, a pessoa nega a necessidade de elaborar o luto, congelando a falta em um objeto tangível. O psicanalista destaca que, embora possa trazer alívio temporário, essa dinâmica impede o trabalho psíquico necessário para superar traumas. Em casos extremos, o reborn se torna uma “infiltração no real”, como definiu Dunker: uma tentativa de materializar o impossível.

 

Em casos terapêuticos, os reborn ajudam idosos com Alzheimer ou pessoas em luto a reestabelecerem vínculos afetivos. No entanto, quando a prática vira substituto permanente, pode indicar dificuldade em lidar com frustrações e perdas.

 

Sociedade doente ou reflexo das demandas modernas?

 

O fenômeno não se limita a contextos terapêuticos. A mercantilização desses bonecos revela uma sociedade que busca satisfação imediata sem os sacrifícios inerentes às relações reais.

 

Dunker explica: “Ter um filho envolve inúmeros sacrifícios, e sacrifícios ainda maiores para as mulheres. Você acorda à noite, seu sono é perturbado, seu corpo se transforma, sua relação conjugal pode ser abalada, você pode ter prejuízos na sua relação laboral, você pode ter atrasos na sua carreira acadêmica. Infelizmente, a gente ainda não dispõe de perfeitos mecanismos para proteger a maternidade das intempéries que vêm junto com ela. O reborn é um bebê que não chora à noite, um bebê que não atrapalha a sua vida conjugal, um bebê que vem com esse botão que muitos pais e adolescentes procuram, mas não acham, que é o botão da gaveta. ‘Eu quero desligar, agora eu não quero mais brincar de ser mãe’, que é uma opção que a gente não tem quando tem um bebê real”.

 

Essa dinâmica provoca estranhamento, especialmente porque confronta a sacralização da maternidade. Enquanto bonecas sexuais são toleradas, a simulação da maternidade gera repulsa, pois desafia a noção de que filhos são insubstituíveis. A popularização do reborn reflete uma crise de conexões autênticas. Em tempos de relações virtuais e inteligência artificial, a fronteira entre humano e objeto se dissolve. O “Vale da Estranheza” (Uncanny Valley) explica o desconforto causado por bonecos quase humanos.

 

Para Dunker, a estranheza surge quando se trata pessoas como coisas substituíveis. Seja com robôs afetivos ou avatares digitais, a sociedade caminha para normalizar substitutos que negam a complexidade do luto e do desejo. “Essa ideia se torna estranha quando você atravessa a barreira entre vivo e morto. Tem um episódio de Black Mirror em que o marido morre e ela contrata um robô que adquire todas as memórias e todos os trejeitos do marido que se foi. Então, no fundo, o que está ali acontecendo que a gente acha estranho? A pessoa está negando a perda. Ela está tratando alguém que é insubstituível como uma coisa substituível”, explica ele.

 

Casos incomuns

 

Algumas das bizarrices que envolvem o fenômeno são: aparição em novela da Rede Globo, na qual os personagens fazem um parto; mulher que acionou a Justiça após virar alvo de piada no trabalho por pedir licença-maternidade para cuidar de bebê reborn; mãe que leva bebê reborn da filha de 4 anos para tomar vacina em posto de saúde de Santa Catarina; babás de bebê reborn; Igreja tradicional de Salvador emitindo comunicado contra batismo de bebê reborn; até homem que agrediu uma bebê real achando que era um reborn.

 

Esse fenômeno é só mais um capítulo na saga da humanização de objetos. De bonecas sexuais a parceiros virtuais, a tecnologia avança para preencher carências, mas esbarra em dilemas éticos.

 

*Via Jornal da USP

 

 

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