No livro E Fawcett Não Voltou (1944), do jornalista Edmar Morel, o autor menciona que a relação entre Cândido Mariano Rondon e Percy Fawcett era “pouco amistosa”.
E que esses embates teriam surgidos entre os anos de 1908 e 1910, nas comissões demarcatórias de fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia, ocasião em que ambos foram convocados para definir as fronteiras geográficas desses países. As divergências envolviam decisões logísticas, rotas e a segurança das missões.
Na década de 1920, o Brasil foi palco de um embate simbólico entre essas duas figuras monumentais, que representavam visões opostas sobre o país e seus mistérios: de um lado, a alma da terra, encarnada por Rondon; do outro, o olhar estrangeiro neocolonialista, sedento de glória, de Fawcett.
O encontro entre os dois antagonistas foi viabilizado por ninguém menos que o presidente da República, Epitácio Pessoa.
Ao apresentar Fawcett a Rondon, o presidente argumentava que o explorador inglês trazia consigo um plano ousado para revelar uma imensa riqueza escondida no coração do país.
No livro de Morel é apresentada uma entrevista com o próprio Rondon que afirmou:
“Falei como soldado e sertanista. Disse-lhe que, para se fazer explorações no Brasil, não precisávamos de estrangeiros, pois quaisquer nacionais, fossem da Marinha, do Exército ou civis, estavam aptos a um empreendimento daquela monta. A minha resposta chocou o Cel. Fawcett.”
Como saída diplomática, propôs-se que Fawcett se unisse a uma comissão brasileira composta por oficiais do Exército. Mas o britânico recusou terminantemente: “Quero seguir sozinho! Uma viagem com muita gente tem os seus inconvenientes…”
Rondon, convicto e movido por profundo patriotismo, manteve sua posição: “Fiel ao meu ponto de vista em defesa dos supremos interesses do país, teimei pela organização de uma caravana nacional…”
Fawcett insistiu: “Se não puder ir sozinho, não seguirei!”
Apesar da resistência de Rondon, o governo cedeu à pressão diplomática do embaixador britânico Ralph Paget. O presidente autorizou que Fawcett entrasse nas selvas com apenas dois acompanhantes.
O experiente sertanista Rondon considerou uma temeridade, uma afronta à lógica e à prudência.
A decisão política foi acompanhada de um gesto ainda mais simbólico e doloroso: o governo brasileiro concedeu a Fawcett uma subvenção de sessenta contos de réis, sob responsabilidade do Ministério das Relações Exteriores.
Enquanto isso, o capitão Ramiro Noronha, da Expedição Rondon, responsável pelos trabalhos de levantamento topográfico, desbravamento e mapeamento completo do rio Kuluene, desde suas cabeceiras até a confluência com o rio Kuriseu justamente no Xingu, de 410 quilômetros por entre selvas e pântanos, recebeu apenas vinte contos.
O contraste gritava, injusto e revelador.
Alguns meses após a partida de Fawcett em sua primeira incursão em 1920, os temores de Rondon se confirmaram.
Acampado no Córrego do Espraiado, a poucas léguas de Cuiabá, o general viu um grupo de três homens se aproximar pela estrada. Um deles, barbudo e exausto, era Fawcett. “O velho militar foi ao encontro do viajante, saudando-o com um alegre ‘Bem-vindo seja…’”
Fawcett confessou o fracasso da primeira tentativa de encontrar Z: “Não consegui muita coisa, general! Muita chuva… Também os Bacairi não fizeram nada por mim… Pretendo voltar brevemente para reiniciar meus trabalhos…”
Rondon não se surpreendeu. Em telegrama enviado ao capitão Amilcar Botelho, chefe do Escritório Central da Comissão de Linhas Telegráficas, relatou o colapso da expedição: “A expedição do coronel Fawcett foi desbaratada em pleno chapadão pelas chuvas de novembro. […] Aqui está de volta, magro e acabrunhado, por ter sido forçado a bater em retirada, antes de entrar no duro da exploração…”
E concluiu: “Lamento não ter o governo organizado a Expedição Brasileira que devia acompanhar o inglês. Teria assim Fawcett apôio firme para varar o sertão bruto…”
O inglês, militar que lutou na Primeira Guerra Mundial, com várias experiências exploratórias pelo mundo afora e na Amazônia peruana, não aceitava as orientações do sertanista brasileiro descendente de índios, homem da terra, da ciência e do povo.
Aliás, alguns pesquisadores de Rondon afirmam que ele não foi laureado com o Nobel da Paz, ao qual foi indicado duas vezes, justamente por preconceito racial, e não por falta de mérito.
Na segunda tentativa, em 1925, ainda menosprezando os conselhos de Rondon, Fawcett partiu novamente. Nunca mais voltou. E seu paradeiro, até hoje, permanece como um dos maiores mistérios da história, não apenas do Brasil, mas do mundo.
O Xingu era explorado desde o viajante Príncipe Adalberto da Prússia em 1852 e do alemão Karl von den Steinen nos anos de 1884 e 1887, mas foi em 1925 que foi finalmente cartografado, mesmo ano que Fawcett sumiu, pelo Capitão Ramiro Noronha que apresentou todas as cartas geográficas da região e apontamentos sobre etnias, desvendando em definitivo todos os mistérios do Xingu.
Rondon, “rei do sertão brasileiro” contava esse acontecimento nas rodas de conversa, como exemplo de nacionalismo pátrio, pois o Brasil, segundo ele, só pode ser conhecido cientificamente de dentro pra fora e por seus próprios desbravadores e cientistas.
*Suelme Fernandes Mestre em História e Membro do IHGMT.
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