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opinião Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 2022, 07:00 - A | A

Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 2022, 07h:00 - A | A

OPINIÃO

Quem tem medo da meritocracia?

*ANDRÉ L. RIBEIRO-LACERDA

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Você já deve ter ouvido falar de George Foreman. O nome, hoje, evoca o rosto popular de um ex-boxeador que se dedica à promoção de grelhas com seu nome na televisão. Duas vezes campeão mundial de boxe, Foreman é considerado um vencedor, um empreendedor. Mas, nem sempre foi assim. Quando tinha vinte e cinco anos, Foreman já havia desempenhado muitos papéis. Foi um jovem mentalmente deprimido que vivia pelas ruas, alguém que havia abandonado a escola no início do ginásio e que vagava através dos guetos na zona urbana. Depois tornou-se a imagem perfeita da máquina do sonho americano. Quando ganhou uma medalha de ouro, tirou do bolso uma bandeira dos EUA e desfilou ao redor do ringue, agitando-a.

 

O gesto sugeria uma demonstração do poder negro no pódio dos vencedores. Mas, segundo revistas da época (New York Times Magazine), houve acusações de que Foreman era, na melhor das hipóteses, um Tio Sam e, na pior, um traidor da luta pelos direitos civis. Recebeu muitas cartas expressando raiva de seu gesto.

 

A vida de George Foreman ilustra alguns aspectos importantes do que chamamos de mobilidade social e sistema meritocrático. A lealdade que Foreman expressou ao sistema de mobilidade social da sociedade estadunidense poderia ser facilmente repetida por muitos que, mesmo sem o êxito dele, ainda partilham da sua fé nas oportunidades que o sistema proporciona.

 

Quando Michael Young publicou originalmente A Ascensão da Meritocraciaem 1957, ele mesmo sublinhou que não havia nada de novo na formulação QI + esforço = mérito. Apenas na maneira como havia sido formulado. Young chamava atenção para as mudanças que o aparecimento da indústria havia provocado na economia. Gerhard Lenski havia mostrado que, nos países industrializados, aproximadamente trinta por cento dos trabalhadores havia feito a transição de ocupações manuais para não-manuais. Ou seja, no sistema aberto de classes, as mudanças produzidas pela industrialização também significavam abertura de oportunidades e novos papéis ocupacionais.

 

O argumento do livro de Young, que provocou tanta celeuma,dizia que “se o solo cria castas, a máquina fabrica classes para as quais as pessoas podem ser designadas por sua realização em vez de ser atribuídas pelo seu nascimento”. Nas sociedades industriais havia ocorrido um crescimento massivo dos sistemas educacionais. A educação básica era considerada um direito universal.

 

Mas, e depois? Como seria se tivesse que ocorrer algum tipo de seleção em algum grau da escala educacional? Young dizia: “a seleção certamente não deve ser feita com base na escolha dos pais, posição ou riqueza, mas de acordo com o mérito da criança ou jovem”. Uma educação meritocrática sustentaria uma sociedade meritocrática?

 

Em um sistema meritocrático, a conquista de status elevados e renda diferencial são baseadas em habilidade técnicas e em maior educação e, portanto, poucos lugares estarão abertos para aqueles sem tais qualificações.

Para Michael Young sim. Ele viu no período em torno de 1914, a presença de gênios e indivíduos com pouca inteligência nas classes altas e trabalhadora. Trabalhadores brilhantes haviam ascendido socialmente apesar de suas posições sociais desfavoráveis, ou seja, existiriam pessoas brilhantes nas classes altas e baixas. A inteligência não teria distribuição centrada em classes sociais. Ela parecia ser distribuída ao acaso.

 

A loteria genética precisa de sua contrapartida social. A expressão de um traço como a inteligência requer um ambiente social e motivações que estejam direcionadas para a ascensão social.

 

Numa sociedade de classes abertas, os talentosos têm a oportunidade de ascenderem a partir das suas capacidades. A Grã-Bretanha anterior ao escrito de Young teria desperdiçado seus recursos humanos, condenando pessoas talentosas ao trabalho manual e bloqueando esforços dos membros das classes mais baixas para obter justo reconhecimento por suas habilidades. Como as escolas e indústrias foram progressivamente abertas ao mérito, crianças inteligentes de cada geração tiveram oportunidade de ascender socialmente.

 

Ao constatar a ascensão do mérito enquanto sistema de alocação de recursos, na verdade do mais precioso dos recursos, que é o recurso humano, Young defende que o nepotismo deve desaparecer, a herança como meio de alcançar um cargo público deve desaparecer, mas eles não têm desaparecido. A crença de que o nepotismo, o suborno e a herança produzem influência negativa na alocação de recursos têm crescido, o que é bom. Mas, o mérito individual deve ser o único teste aplicável, diz Young.

 

Em um sistema meritocrático, a conquista de status elevados e renda diferencial são baseadas em habilidade técnicas e em maior educação e, portanto, poucos lugares estarão abertos para aqueles sem tais qualificações.

 

O livro de Young recebeu uma enxurrada de críticas. Uma linha de argumentação foi baseada nas objeções de John Rawls. Segundo ele, “a oportunidade justa poderia levar a uma insensível sociedade meritocrática”. Não se trata, portanto, de questionar a possibilidade de operacionalizar um sistema baseado no mérito, mas de não aceitar a desigualdade por ele gerada. Esse argumento merece uma avaliação mais pormenorizada. Mas, de antemão, pode-se contra-argumentar, qual desigualdade é então aceitável se todas as sociedades são desiguais?

 

Outra linha de argumentação defende que uma meritocracia só poderia existir em qualquer forma completa se houvesse um tal estreitamento de valores que as pessoas poderiam ser colocadas em ordem de classificação de valor. Young respondeu bem essa crítica. Se avaliássemos as pessoas não apenas de acordo com sua inteligência, sua educação, sua ocupação e seu poder, mas sim de acordo com sua bondade, sua coragem, sua imaginação e sensibilidade, sua simpatia e generosidade, não existiria classes sociais.

 

Muitas críticas podem ser feitas à proposta de Young. Mas, não há como não reconhecer a ascensão da meritocracia.

 

A elite do poder e o congresso brasileiro parecem mais heterogêneos hoje do que há cinquenta anos. Embora composta significativamente por homens brancos, atualmente há mulheres e negros nas diretorias de grandes empresas brasileiras. A elite do poder não é multicultural em qualquer sentido pleno do conceito, mas é hoje mais diversificada e heterogênea em termos étnicos e de origens sociais.

 

*André L. Ribeiro-Lacerda – Sociobiólogo e psicólogo, é professor titular de sociologia da UFMT, campus Cuiabá.    

        

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