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Ana Minuto: "Para a população negra é dado sempre o pior lugar, o da marginalidade"
Há mais de uma década o Dia da Consciência Negra é tomado por posts nas redes sociais com a célebre frase - tirada de contexto, vale lembrar - do ator Morgan Freeman afirmando que considera "ridículo" o fato de existir um mês para a Consciência Negra e argumentando que, para se combater o racismo, era melhor não falar sobre o assunto.
Freeman também teria dito que "o dia em que deixarmos de nos preocupar com consciência branca, negra ou amarela e nos preocuparmos com consciência humana, o racismo deixará de existir". A fala costuma ser usada por muita gente, em sua maioria pessoas brancas, para relativizar a importância da data e, conforme ativistas, da luta negra.
Sobre a entrevista concedida em 2006 ao programa "60 Minutes" (CBS), o ator chegou a justificar posteriormente que na sua visão o ideal seria acabar com a consciência de raça e parar de colocar rótulos de cores às pessoas.
Contextos ou não à parte, o fato é que a polêmica sobre a inexistência de um dia da consciência humana, branca ou universal em detrimento da oficialização do Dia da Consciência Negra sempre vem à tona em novembro e gera repercussão entre ativistas e representantes dos movimentos negros, que apontam incongruências na reivindicação.
Para Ana Minuto, cocriadora do Potências Negras Summit, evento online de carreira focada na população negra que chega a atingir 5 milhões de pessoas em 20 países, antes de criticar o Dia da Consciência Negra é importante relembrar o passado escravocrata do Brasil que impacta as pessoas negras em todas as relações.
"Quando a gente fala em reação humana, realmente, somos uma raça só. Porém, nós fomos colocados em um lugar de menor valor que nos nega o afeto, o trabalho, a alimentação, a saúde. Somos a população que vive em vulnerabilidade social constante por conta desse processo escravocrata e por isso não dá para gente falar da raça humana e tudo bem. Para a população negra é dado sempre o pior lugar: o da marginalidade", afirma.
Já Jacques d'Adesky, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), sustenta que o uso da expressão "consciência negra" não visa valorizar uma cor ou uma raça, mas a inteligência de uma comunidade que conseguiu ressignificar positivamente a palavra "negro", legado da escravidão que visava desumanizar os africanos escravizados. "Celebrar o Dia da Consciência Negra no Brasil trata de reconhecer o aporte positivo da comunidade negra à formação socioeconómico e cultural ao longo da história do país", diz ele, que é autor do livro "Uma Breve História do Racismo, Intolerância, Genocídio e Crime contra a Humanidade" (Cassará Editora).
Sociedade racista
A taxa de extrema pobreza entre negros (pretos e pardos) representa mais do que o dobro se comparado com os brancos, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento mostra que em 2020 a extrema pobreza atingiu 7,4% dos pretos e pardos, enquanto a pobreza foi presente na vida de 31% desta população; já entre os brancos, o indicador marcou 3,5% e 15,1%, respectivamente.
Além de maioria entre os desempregados (46%), a população negra também recebe menores salários. A diferença média de rendimentos mensais de brancos e pretos ou pardos ultrapassa R$ 1.200,00. "São dados que mostram que todos precisam reconhecer e ter consciência de que vivemos numa sociedade racista", diz Luanny Faustino consultora da CKZ Diversidade, que defende que o reconhecimento dessa realidade permite refletir sobre como podemos construir de forma conjunta uma sociedade justa para todas as pessoas.
Na opinião de Dom Filó, coordenador executivo da CULTNE, o maior acervo virtual de cultura negra da América Latina, celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra é o mínimo que os negros brasileiros merecem após vivenciarem mais de 300 anos de escravidão nesse país, que até pouco tempo atrás não reconhecia o racismo impregnado em suas entranhas. "A reparação se faz necessária por conta da contribuição cultural, linguística e entre outros costumes que forjaram a cultura brasileira. Portanto, caiu a farsa da democracia racial do pós-período escravagista e hoje vivemos um momento crucial na luta antirracista em que jovens negros são mortos a cada 23 minutos, espaços dos cultos de religiões de matrizes africanas são vilipendiados e ameaçados pelo discurso de ódio de grupos racistas", lembra.
A candomblecista Rosa Perdigão, coordenadora geral da Associação das Baianas de acarajé do Rio de Janeiro (ABAMRJ) e vice-presidente do Conselho Municipal de Política Cultural (CMPC), endossa a lógica de Dom Filó: "Eu não celebro o Dia da Consciência negra, eu recordo e multiplico o porquê dessa data com a verdadeira história, aquela que os livros não contam.
E, sim, essa reparação é necessária, sem discriminar as outras etnias. Qualquer pessoa que vivenciou a história tem muito para falar sobre a diferença que nós, negros, sentimos principalmente na cor da nossa pele!", diz.
Ato político e afirmação
A cantora Paula Lima reforça que a data é um ato político de afirmação da história do povo negro. "É o dia de celebrar a existência de Zumbi dos Palmares, o maior símbolo de resistência contra todas as formas de exploração, contra a escravidão, a opressão, a desigualdade. O 20 de novembro é o dia de refletir, conscientizar, lutar por igualdade e justiça e, principalmente, reafirmar o compromisso com o futuro, com políticas afirmativas para equilibrar um passado cruel e injusto. É o dia de reafirmar o compromisso com a democracia e a liberdade", pontua.
"Eu diria que temos poucos motivos pra celebrar, mas prefiro enxergar o copo “meio cheio” e celebrar o que a negritude produziu de positivo", comenta Fernanda Ribeiro, cofundadora da Conta Black. "Como, por exemplo, o reflexo positivo das políticas afirmativas implementadas, que permitiram o aumento em 400% da quantidade de negros em universidades públicas. O aumento da representatividade negra nos espaços também é algo que me faz celebrar muito. Cada vez mais vemos “primeiros negros” a fazerem coisas importantes e isso gera um efeito em cadeia nas próximas gerações. E por último, celebro a nossa coragem para protagonizar negócios que atendem às nossas demandas específicas, que por muito tempo foram ignoradas pelo mercado. É muito bom ver cada vez mais empreendimentos liderados por pessoas negras, para pessoas negras", completa Fernanda.
Inversão de perspectiva
Para encerrar a controvérsia sobre a relevância ou não da data, Leizer Pereira, fundador e diretor executivo da Empodera, uma das maiores plataformas do Brasil na construção e aceleração de negócios inclusivos, lança a pergunta: você já sofreu racismo ou acha que está sujeito a sofrer racismo? "Se a resposta for não, e você vive na bolha das pessoas brancas de classe média, quem sabe essa data não lhe sensibilize sobre o problema central do racismo que precisamos vencer para darmos um passo civilizatório à frente. O problema do racismo é dos negros e dos brancos, e assim como você é parte do problema, você também é parte da solução. Busque seu letramento racial e se engaje na causa", afirma.
"Temos, sim, que celebrar o Dia Nacional da Consciência Branca! Afinal, os euro-brasileiros descendem de povos que foram escravizados e submetidos a tratamentos brutais, incluindo torturas e estupros, por parte dos africanos e seus descendentes. Mesmo após a Abolição da Escravatura, continuaram a ser discriminados no mercado de trabalho e vitimados pela violência policial, para não falar na área do judiciário e até na medicina obstetrícia, em que mulheres brancas recebem, comprovadamente, menos atenção. E isso é particularmente visível no cinema e na televisão, em que brancos têm muito menos visibilidade, sendo relegados a papeis secundários. E também na política, em que são sub-representados nos cargos executivos e nos parlamentos", ironiza de maneira cirúrgica Carlos Alberto Medeiros, mestre em Ciências Jurídicas e Sociais e autor de "Na Lei e na Raça: Legislação e Relações Raciais, Brasil-Estados Unidos" (Ed. Lamparina).
Para provar sua teoria de como inversão de perspectiva soa dissonante da realidade, ele convoca, ainda de maneira sarcástica, que "é hora de reagir ao privilégio negro comemorando o grande herói Domingos Jorge Velho. Viva o Dia da Consciência Branca!". Domingos Jorge Velho foi um bandeirante paulista que caçava escravos fugitivos e liderou as tropas que destruíram o Quilombo dos Palmares, invasão na qual morreu Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1965.
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