28 de Abril de 2025

cotações: DÓLAR (COM) 5,69 / EURO 6,48 / LIBRA 7,58

variedades Segunda-feira, 28 de Abril de 2025, 06:00 - A | A

Segunda-feira, 28 de Abril de 2025, 06h:00 - A | A

GRANDE FARSA

Como diários falsos de Hitler enganaram a imprensa britânica

Redação

 

 

Reprodução

1

 

 

No dia 25 de abril de 1983, 42 anos atrás, a respeitada revista alemã Stern publicou o que se acreditava ser o furo jornalístico mais espetacular da História: os diários particulares de Adolf Hitler (1889-1945), até então desconhecidos.

 

Para demonstrar sua extraordinária exclusividade frente à imprensa mundial, a revista semanal organizou, naquele mesmo dia, uma entrevista coletiva em Hamburgo, na Alemanha.

 

A reportagem, de fato, dominaria as manchetes mundiais – mas não pelos motivos imaginados pela revista.

 

Três dias antes, o editor da Stern em Londres, Peter Wickman, declarou à BBC que eles estavam "absolutamente convencidos" de ter em mãos os diários autênticos de Adolf Hitler.

"Nós duvidamos muito no começo, mas pedimos a um grafólogo que os examinasse e um especialista comparou o papel", contou ele.

 

 

"Consultamos historiadores, como o professor [Hugh] Trevor-Roper [1914-2003], e todos eles têm certeza de que os diários são verdadeiros."

 

A descoberta e a compra

 

Os registros manuscritos cobriam os anos de 1932 a 1945, que incluem todo o período do Terceiro Reich de Hitler.

 

 

"São 60 diários", contou Wickman à BBC. "Eles se parecem um pouco com cadernos escolares, mas com capa dura."

 

"Eles têm carimbos no lado externo com uma suástica e uma águia e, dentro, é claro, a letra gótica de Hitler, muito parecida com patas de aranhas."

 

A Stern acreditava que sua descoberta poderia reescrever o que se sabia até então sobre o líder nazista. E o conteúdo dos diários, certamente, era revelador. Ele mostrava um lado sensível pouco conhecido do Führer.

 

Os manuscritos detalhavam tudo, desde a luta de Hitler contra a flatulência e a halitose e as pressões da sua namorada, Eva Braun (1912-1945), para conseguir entradas para os Jogos Olímpicos, até lembretes para enviar um telegrama de aniversário para o então líder soviético Josef Stalin (1878-1953) — "a velha raposa".

 

Os cadernos também pareciam indicar, de forma um tanto surpreendente, que o líder nazista não sabia do Holocausto sendo conduzido em seu nome.

 

Os diários teriam sido supostamente descobertos por um jornalista da Stern chamado Gerd Heidemann (1931-2024). Ele já era conhecido na revista pela sua obsessão por objetos nazistas.

 

Em 1973, a Stern o encarregou de preparar uma reportagem sobre um iate dilapidado que, um dia, pertenceu ao vice-comandante de Hitler, Hermann Göring (1893-1946). Na ocasião, Heidemann gastou uma fortuna para comprar e restaurar o iate.

 

Ele também começou um caso amoroso com a filha de Göring, Edda (1938-2018), que o apresentou a diversos antigos nazistas. E foi por meio destes contatos, segundo Heidemann, que ele tomou conhecimento dos diários de Hitler.

 

 

Heidemann afirmou que o avião que transportava os diários havia caído. Os manuscritos teriam sido salvos do acidente e armazenados em um palheiro.

 

Nos anos que se seguiram, eles teriam sido enviados para um colecionador na antiga Alemanha Oriental (1949-1990), que estava disposto a vendê-los.

 

O repórter negociou o acordo de compra, agindo como intermediário entre a fonte alemã-oriental e a revista.

 

A promessa de uma sensacional reportagem exclusiva em todo o mundo, fornecendo uma visão até então desconhecida da mente do ditador nazista, foi irresistível para a Stern. Mas a revista estava decidida a controlar rigidamente quem ficaria sabendo do furo jornalístico.

 

Seus editores contrataram especialistas em caligrafia para autenticar os diários, comparando os manuscritos com documentos "genuínos" de Adolf Hitler. Mas eles forneceram apenas algumas páginas selecionadas dos cadernos para que os especialistas as observassem.

 

Por fim, a Stern pagou pelos volumes cerca de 9,3 milhões de marcos alemães (2,3 milhões de libras, ou cerca de R$ 17,5 milhões, pela cotação atual) – uma soma exorbitante, que levou a revista a armazenar os diários em um cofre na Suíça, para maior segurança.

 

Verdadeiro ou falso?

 

O primeiro historiador a examinar os diários foi o professor Hugh Trevor-Roper, também conhecido como Barão Dacre de Glanton.

 

Em 1947, ele escreveu o livro Os Últimos Dias de Hitler (Ed. Guerra & Paz, 2022), que lhe deu grande prestígio no setor acadêmico. Trevor-Roper era considerado um dos principais especialistas no ditador nazista.

 

O professor também foi diretor independente do jornal britânico The Times – que, dois anos antes, havia sido adquirido pelo empresário Rupert Murdoch, junto com seu periódico associado, The Sunday Times.

 

Inicialmente, Trevor-Roper suspeitou dos diários. Mas ele viajou até a Suíça para examiná-los pessoalmente.

 

Sua opinião começou a mudar quando ele soube da história original dos manuscritos. Ele também foi informado, erroneamente, que exames químicos teriam concluído que eles eram anteriores à Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

 

Mas o que realmente pesou para o historiador foi o imenso volume de material envolvido.

 

"O que mais surpreendeu Hugh Trevor-Roper e certamente me impressionou, como leigo, quando vi o material original, foi a sua enorme escala", contou à BBC o então editor do The Times, Charles Douglas-Home (1937-1985), em 22 de abril de 1983. "O imenso escopo deste arquivo."

 

"Não são apenas cerca de 60 volumes de cadernos escritos à mão por Hitler que estão ali. Há cerca de 300 dos seus desenhos, fotografias e documentos pessoais, como seu cartão de visitas."

 

"Lembro que há os desenhos que ele apresentou à escola de artes quando era jovem e desejava entrar naquela escola", prosseguiu ele. "E existe uma pintura, um quadro a óleo e assim por diante."

 

"Umfalsificador teria que ser muito bom para forjar tudo aquilo."

 

Surgem as dúvidas

 

Trevor-Roper se convenceu de que os diários eram verdadeiros. Ele chegou a escrever um artigo para o Times confirmando sua autenticidade e declarando que os eventos históricos precisariam ser reavaliados à luz dos manuscritos.

 

Quando foi divulgada a existência dos diários de Hitler, surgiu uma guerra de ofertas sobre seus direitos de publicação em série.

 

Murdoch, dono do The Sunday Times, chegou a viajar para Zurique, na Suíça, para negociar pessoalmente um acordo.

 

Com o contrato de publicação em série assinado, a Stern organizou apressadamente uma entrevista coletiva para anunciar a publicação dos diários de Hitler para o mundo.

 

Mas, antes mesmo da grandiosa apresentação dos cadernos, surgiram dúvidas sobre sua veracidade, a começar pela própria equipe do The Sunday Times, que já havia se queimado no passado.

 

Em 1968, o jornal pagou um adiantamento por diários supostamente escritos pelo líder fascista italiano Benito Mussolini (1883-1945), cuja veracidade também havia sido confirmada – e por ninguém menos que seu filho.

 

"Mas, no final, eles eram falsificações criadas por duas senhoras que moravam em Vercelli, na região de Milão [na Itália]", contou em 2011 ao programa da BBC Witness History o jornalista Phillip Knightley (1929-2016), que trabalhou na equipe investigativa do The Sunday Times.

 

A exposição da farsa

 

Murdoch tinha tanta certeza sobre os diários que, mesmo com as reservas do seu editor Frank Giles (1919-2019), correu para iniciar a publicação da série impressa no The Sunday Times, um dia antes do anúncio da Stern à imprensa. A manchete do jornal dizia "exclusividade mundial".

 

Giles telefonou para Trevor-Roper, para se tranquilizar em relação à história. E acabou ouvindo o historiador confessar que não só ele tinha muitas dúvidas, como estava dando um "giro de 180 graus" sobre a autenticidade dos diários.

 

"Todos na sala, todos os executivos do jornal afundaram nas cadeiras e colocaram as mãos na cabeça", conta Knightley, "pois havíamos perdido nosso principal verificador".

 

"Ficou claro que a história estava totalmente errada."

 

O jornal ainda poderia ter parado as máquinas e alterado a primeira página. Mas, quando Giles telefonou para o dono do The Sunday Times, "Murdoch disse 'só porque Dacre vacilou com isso o tempo todo, dane-se ele, vamos publicar'", relembra Knightley.

 

Para a Stern, tudo ficaria ainda pior na entrevista coletiva do dia seguinte.

 

Depois que o editor-chefe da revista, Peter Koch (1938-1989), declarou estar "100% convencido de que Hitler escreveu cada palavra naqueles cadernos", o Barão Dacre – o mesmo historiador que havia confirmado sua autenticidade – reconheceu ao ser questionado que estava repensando o assunto.

 

Para o olhar horrorizado dos executivos da Stern, Trevor-Roper declarou que não havia conseguido estabelecer a relação entre o acidente de avião e os supostos diários – e que ele foi forçado a fazer um julgamento apressado.

 

"Devo dizer, como historiador, que lamento que os métodos habituais de verificação histórica, talvez por necessidade, tenham sido sacrificados até certo ponto em função das exigências do furo jornalístico", declarou ele.

 

'O exuberante odor da falsificação'

 

No dia seguinte à caótica entrevista coletiva, o negociante de autógrafos americano Charles Hamilton (1913-1996) declarou ao programa BBC Breakfast que, assim que viu as páginas dos diários, ele sentiu "o exuberante odor das falsificações".

 

Hamilton afirmou que sabia que a assinatura não era autêntica, pois ele via documentos falsos de Hitler constantemente.

 

"Logo tudo ficará definido sem qualquer dúvida (e sem nenhum painel de especialistas, que acho supérfluo no momento), todo o assunto irá morrer e será uma grande farsa na história da humanidade", previu ele.

 

Durante seu julgamento, o falsificador de arte Konrad Kujau mostra um dos diários de Hitler que ele falsificou. Em 1984, um tribunal de Hamburgo condenou Kujau a quatro anos e meio de prisão pela falsificação.

Crédito,Getty Images / O falsificador Konrad Kujau forjou os diários de Adolf Hitler

 

E foi o que aconteceu. Duas semanas depois, uma rigorosa análise forense expôs que os diários eram falsos.

 

Como Hamilton indicou à BBC, a suposta assinatura de Hitler não era verdadeira e, mais do que isso, os exames químicos revelaram que o papel, a cola e a tinta dos manuscritos só começaram a ser fabricados depois da Segunda Guerra Mundial.

 

Os diários também estavam salpicados de erros, frases modernas e imprecisões históricas. Algumas referências mencionavam informações de que Hitler não poderia ter conhecimento na época.

 

Em vista destas revelações, o jornal The Sunday Times rapidamente abandonou a publicação da série e divulgou um pedido de desculpas. A Stern também se desculpou publicamente por ter acreditado na farsa.

 

Reputações em baixa, circulação em alta

 

Pressionado, Heidemann revelou que a fonte alemã-oriental que forneceu os diários era Konrad Kujau (1938-2000), um falsificador que se descobriu ser o autor daquele trabalho.

 

Kujau era um artista experiente, mas suas falsificações estavam longe da perfeição.

 

Em busca de inspiração, ele plagiou grandes trechos do livro Hitler: Speeches and Proclamations 1932-1945 ("Hitler: discursos e proclamações 1932-1945", em tradução livre), do historiador alemão Max Domarus (1911-1992).

 

Por conta disso, Kujau copiou, palavra por palavra, alguns dos erros factuais e cronológicos publicados na primeira edição do livro.

 

Para tentar dar aos diários uma impressão mais pessoal, ele imaginou um lado mais prosaico da vida do Führer, incluindo trechos como "não posso nem mesmo sair do trabalho e visitar Eva", "preciso ir ao correio enviar alguns telegramas" e "Eva diz que tenho mau hálito".

 

Kujau chegou a ter dificuldades com as sofisticadas iniciais góticas utilizadas nas capas dos diários. Ele chegou a incluir acidentalmente as iniciais FH em vez de AH.

 

O falsificador também tentou envelhecer os cadernos, simplesmente despejando chá sobre eles e os esfregando sobre a mesa.

 

Kujau foi favorecido pela autenticação inicial dos diários porque era um prolífico falsificador de objetos nazistas. Por isso, muitos dos documentos "genuínos" fornecidos pela Stern aos especialistas, para que eles comparassem a escrita de Hitler, na verdade, também haviam sido produzidos pelo próprio Kujau.

 

O falsificador foi preso pela polícia e confessou sua participação na farsa. Ele chegou a demonstrar sua culpa, escrevendo sua confissão com letra no estilo de Hitler.

 

Em 1985, Kujau foi declarado culpado de fraude e falsificação e condenado a quatro anos e meio de prisão.

 

Novas investigações da polícia concluíram que Heidemann também inflacionou os preços que, segundo ele, sua fonte havia pedido pelos diários – e ficou com parte do dinheiro pago pela Stern.

 

Aparentemente, ele pretendia custear seu estilo de vida extravagante, a manutenção do seu iate nazista e sua propensão a comprar cada vez mais objetos que pertenceram a ditadores. Ele afirmaria mais tarde ser o dono de uma cueca do ex-presidente de Uganda Idi Amin Dada (1928-2003).

 

Como Kujau, Heidemann foi condenado por fraude em 1985 e sentenciado a quatro anos e oito meses de prisão.

 

No seu julgamento, ele insistiu que também havia sido enganado, mas Kujau sempre afirmou que o repórter sabia que os diários eram falsos.

 

Após o escândalo, a reputação de Trevor-Roper como historiador ficaria manchada para sempre. Koch e outro editor da Stern perderam seus empregos e Giles foi removido do cargo de editor do The Sunday Times.

 

O próprio Murdoch declararia ao Inquérito Leveson sobre ética na imprensa britânica, em 2012, que sua decisão de publicar a reportagem "foi um dos maiores erros que cometi e assumo total responsabilidade por ele. Terei que conviver com isso pelo resto da minha vida."

 

Mas a circulação do seu jornal disparou com a decisão de publicar a história falsa.

 

E, como Murdoch insistiu em uma cláusula contratual obrigando a Stern a devolver todo o dinheiro pago pelo The Sunday Times, caso se comprovasse que os diários eram falsos, o magnata da imprensa só se beneficiou financeiramente da farsa histórica.

 

Leia a versão original desta reportagem, com os vídeos das entrevistas da época (em inglês), no site BBC Culture.

 

 

Nossas notícias em primeira mão para você! Link do grupo MIDIA HOJE: WHATSAPP

Siga a pagina  MÍDIA HOJE no facebook:(CLIQUE AQUI)



Comente esta notícia