Estamos vivenciando uma mudança histórica, silenciosa e significativa: a criação de um sistema econômico fundamentado no poder concentrado das grandes empresas de tecnologia e na exploração em larga escala de dados como a principal força produtiva. As mudanças tecnológicas das últimas três décadas, impulsionadas pela digitalização completa do dia a dia, geraram um novo campo de conflito político e social que reconfigura a luta de classes de maneira inédita.
No século XX, o capitalismo industrial consolidou sua predominância com base em três pilares: a indústria, o trabalho remunerado e o consumo em larga escala. Esse modelo fortaleceu uma classe trabalhadora estruturada em sindicatos, habilitada para reivindicar direitos coletivos, pressionar o governo e expandir as políticas públicas de bem-estar social. Desde os anos 1980, porém, a globalização financeira, a desregulamentação dos mercados e a revolução da informática iniciaram um processo de fragmentação desse tecido social. O trabalho se tornou mais precário, flexível e isolado. O surgimento das plataformas digitais acelerou essa tendência.
Hoje, empresas como Amazon, Google, Apple, Microsoft e Meta detêm um valor de mercado e uma influência política sem precedentes na história. Não se limitam a ser empresas: transformaram-se em estruturas globais de comunicação, comércio, informação e entretenimento. A geração de dados passou a ser a riqueza petrolífera do século XXI. Nesse modelo, o cliente se torna um fornecedor involuntário de matéria-prima ao se conectar - seu perfil e rotina começam a alimentar algoritmos, aumentando os lucros.
é necessário repensar a democracia e a soberania econômica para evitar que a transição digital leve a uma nova era de dominação sem precedentes.
A filósofa de Harvard, Shoshana Zuboff, chamou essa forma de acumulação de “capitalismo de vigilância”, no qual o controle de dados pessoais gera novas desigualdades de poder. O que antes se baseava no trabalho material agora se fundamenta na coleta e monetização da experiência humana. A luta de classes não acabou — ela apenas se transformou e mudou de lugar.
Esse novo sistema econômico também é um sistema de poder simbólico. Algoritmos determinam o que visualizamos, o que consumimos e, em certa medida, o que pensamos. A manipulação da atenção passou a ser um recurso político e econômico. As grandes empresas de tecnologia, ao invés de serem neutras, começaram a se envolver diretamente em processos eleitorais, intermediar discussões públicas e filtrar discursos. O caso da "Cambridge Analytica", que envolveu o uso de dados do Facebook para manipular eleições, indica a urgência de uma melhor fiscalização das instituições democráticas no universo republicano delineado por essa realidade.
Economistas apontam que, pela primeira vez, existe um pequeno número de empresas capazes de controlar mercados inteiros e influenciar políticas nacionais. A disputa entre Estados e big techs começa a crescer, como mostram as multas aplicadas pela União Europeia e os projetos de regulação da inteligência artificial. Mas ainda estamos longe de reequilibrar esse tabuleiro.
A emergência da inteligência artificial generativa (habilitada para produzir textos, imagens e decisões complexas) apresenta um novo desafio: o perigo de uma economia na qual as atividades cognitivas se transformem em mercadoria abundante, desvalorizando o trabalho intelectual e deslocando milhões de profissionais. A ansiedade em relação ao futuro incerto já é vivenciada por advogados, professores, designers e jornalistas.
A luta de classes nunca foi tão dependente do controle da tecnologia. A batalha pelo dado, pelo algoritmo e pela capacidade de influenciar comportamentos é a nova linha de frente. Em um mundo onde tudo se transforma em informação, o futuro é determinado por quem detém o controle da infraestrutura. Essa constatação deve servir como um aviso: é necessário repensar a democracia e a soberania econômica para evitar que a transição digital leve a uma nova era de dominação sem precedentes.
É por aí...
*GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO tem formação em Filosofia, Sociologia e Direito.
*Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.
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