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opinião Sábado, 27 de Julho de 2024, 06:00 - A | A

Sábado, 27 de Julho de 2024, 06h:00 - A | A

OPINIÃO

O álcool no pão de forma e o Direito do Consumidor

Redação

 

Freepik

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Recentemente, a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, conhecida como Proteste, relatou que algumas marcas de pães de forma possuem concentrações de álcool que ultrapassam o limite aceitável de consumo [1].

 

 

A notícia sobre a existência de álcool nos pães de forma se espalhou nos meios de comunicação [2], chamando a atenção especialmente pelo risco de motoristas excederem o limite legal de álcool no teste do bafômetro (0,04 mg/1), o que poderia constituir um crime de trânsito (artigo 306 do CTB).

 

Nesse contexto, é sabido que a presença de álcool no pão resulta da fermentação natural do produto, mas é certo que alguns fornecedores buscam aumentar a vida útil do produto mediante o uso de determinadas substâncias que, apesar legalmente permitidas, precisam ser monitoradas de maneira a garantir a segurança dos consumidores.  

 
 

De outra banda, a Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias, Pães e Bolos Industrializados) rebateu a análise realizada pela Proteste alegando que houve falhas metodológicas significativas acerca dos procedimentos e as conclusões do estudo realizado [3].

 

Sobre a situação narrada, o estudo da Proteste destacou que “o álcool não pode ser considerado uma substância inerte; pelo contrário, a sua utilização em preparações farmacêuticas está associada a questões de segurança, que envolvem o risco de toxicidade aguda e crônica. Trabalhos na literatura apontam para a necessidade de investigar a questão da exposição dos consumidores, em especial das crianças, ao etanol através de produtos alimentares que não estejam rotulados como contendo álcool e em formulações farmacêuticas” [4].

 

Disparidade informativa

 

Não obstante a questão ainda estar sob a análise da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) [5], constatado ou não o alto teor alcoólico nos pães de forma relacionados pela Proteste, o fato é que a notícia pegou a população de surpresa, visto que grande parte dos consumidores não sabia sobre a existência de álcool no produto mencionado. Essa dedução é bastante coerente, haja vista a falta de informação no rótulo ou na embalagem dos pães de forma.

 

 

Nesse sentido, importa ressaltar que o direito à informação insculpido no inciso III do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor [6] revela um dever de conduta do fornecedor com a finalidade de preservar e promover a boa-fé objetiva na relação contratual consumerista (artigo 4º, III) [7]. Em outras palavras, numa relação contratual consumerista, o fornecedor tem a obrigação de informar adequadamente o consumidor, prezando pela lealdade e a transparência da informação.

 

Sobre o tema, ao tratar do vício do produto, inicialmente, o artigo 18 do CDC versa sobre os vícios de qualidade por inadequação [8], ou seja, aqueles que tornam o produto impróprio para o consumo. Nessa linha, em primeiro lugar, deve ser lembrado que o artigo 18 do CDC trouxe previsão expressa acerca da existência de vício quando ocorrer disparidade informativa, quer dizer, quando houver desconformidade entre “as indicações do recipiente, da embalagem, rotulagem ou da mensagem publicitária”.

 

Recomendação da Anvisa e o artigo 18 do CDC

 

Numa primeira análise, parece que a existência de álcool no produto, além de precisar ser adequada à concentração permitida pelo órgão regulador, deveria ser destacada no rótulo ou na embalagem. Nesse rumo, cabe recordar que a Anvisa, em 2002, editou a RE nº1/02, em complementação ao disposto na Resolução RE n°543/01, mantendo a proibição da presença de etanol em todos os produtos fortificantes, estimulantes de apetite e crescimento, bem como determinou que os produtos polivitamínicos destinados a crianças com idade inferior a 12 anos ou de uso pediátrico apresentassem uma concentração máxima de etanol não superior a 0,5% em suas formulações.

 

 

Já para os adultos, foi permitida um concentração de etanol não superior a 2,0% [9]. Além disso, a referida norma também determinou que os produtos deste gênero deveriam apresentar em destaque no seu rótulo a seguinte expressão: “Produto de uso exclusivo em adultos. O uso em crianças representa risco à saúde”. Então, naquela oportunidade, a Anvisa já enfrentou, de certo modo, o assunto ora em debate, possuindo parâmetros de ajuste caso seja necessário.

 

Noutro giro, merece destaque o inciso segundo do artigo 18 do CDC, o qual dispõe que “os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação”. Percebe-se que esse dispositivo legal também poderá ter aplicação no caso em tela se constatado o excesso de álcool no produto, visto que o produto poderia ser caracterizado como nocivo à saúde, bem como restaria configurada uma violação da norma regulamentar.

 

 

Vulnerabilidade

 

Ademais, lembrando que o princípio da vulnerabilidade ilumina todo o caminho da relação de consumo (artigo 4º, I do CDC) [10], cabe considerar que o consumo do aludido produto também é realizado por crianças e idosos, os quais apresentam uma vulnerabilidade agravada, fincada na tutela constitucional que ambos possuem (artigos 227 e 230 da Constituição) [11]. Nesse sentido, cabe abrir um parênteses para mencionar sobre a consumidora gestante, a qual, nesta hipótese, parece também apresentar uma vulnerabilidade agravada, pois a exposição ao álcool pode afetar o desenvolvimento do feto (síndrome alcóolica fetal [12]).

 

 

Por qualquer ângulo que se observe o caso ventilado, havendo ou não excesso de álcool nos pães de forma, a informação acerca desta substância no rótulo ou na embalagem do produto parece se aproximar mais daquela segurança exigida pelo diploma consumerista [13].

 


 

[1] Disponível em https://www.temalcoolnopao.com.br/. Acesso realizado em 24/07/2024.

 

[2]  Disponível  em  https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/07/18/desesperou- detran- esclarece- detalhes-sobre-quantidade-de-alcool-no-pao-de-forma-entenda.ghtml. Acesso realizado em 24/07/2024.

 

[3] Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/07/13/associacao-rebate-teste-que-apontou-alcool-em-pao-de-forma-incoerencias.htm. Acesso realizado em 24/07/2024.

 

[4] Disponível em https://www.proteste.org.br/. Acesso realizado em 24/07/2024.

 

[5]Disponível em https://minhasaude.proteste.org.br/anvisa-investiga-alto-teor-alcoolico-paes-de-forma- apos- alerta- proteste/#:~:text=Anvisa%20investiga%20alto%20teor%20alco%C3%B3lico%20em%20p%C3%A3es%20ap%C3%B3s%20alerta%20da%20Proteste,- A%20Anvisa%20avalia&text=A%20Ag%C3%AAncia%20Nacional%20de%20Vigil%C3%A2ncia,marcas%20de%20p%C3%A3o%20de%20forma. Acesso realizado em 24/07/2024.

 

[6]“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: (…) III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;”

 

[7]“Art. 4º. (…) III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;”

 

[8]Sobre os vícios de qualidade por inadequação, a doutrina versa que “estes se caracterizam pela inservibilidade do produto aos seus fins, pelo seu inferior desempenho, violando unicamente a integridade patrimonial do consumidor.” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 90)

 

[9]Disponível   em  https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2002/rdc0001_25_01_2002.html#:~:text=2001)%2C%20resolve%3A-,Art.,Art. Acesso realizado em 24/07/2024.

 

[10]“A noção de vulnerabilidade no direito associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica.” (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 131/133)

 

[11] Idem, p. 128.

 

[12]Sobre o  assunto,  ver:  https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=13851&tipo=PARECER&orgao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=17791&situacao=&data=19-04-2016. Acesso realizado em 25/07/2024.

 

[13] Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: V – incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo”.

 

 

  • é doutor e mestre em Direito Civil (Uerj), professor adjunto da PUC-Rio (mestrado e graduação), professor da pós-graduação da Uerj, FGV e Emerj, advogado e árbitro.

  • é mestre em Direito Civil Contemporâneo e Prática Jurídica (PUC) e advogado.

     

     

    *Conjur

     

     

 *Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.

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