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DESAFIOS

Constitucionalização da Defensoria deu acesso à Justiça, mas segue insuficiente

Conjur

 

Arquivo Senado Federal

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Com promulgação da Constituição de 1988, Brasil transformou Defensoria Pública em órgão essencial à função jurisdicional

 

Há 35 anos, completados na última quinta-feira (5/10), foi promulgada a Carta Magna, que alçou a Defensoria Pública ao nível de instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Possivelmente, nenhum órgão integrante do sistema de Justiça avançou tanto em tão pouco tempo no Brasil. E, apesar disso, esse avanço ainda é insuficiente para o cumprimento de sua função.

 

Segundo os dados mais recentes, o país conta com 6.235 defensores públicos. O levantamento foi feito em 2020 pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadef), em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

 

Como o Censo só atualizou os dados em 2022, foram usadas projeções de crescimento da população. Elas indicavam que eram necessários mais 4,5 mil defensores para dar conta do recado — hoje, o país tem cerca de nove mil vagas criadas para as Defensorias Públicas, mas três mil ainda estão abertas. 

 

 

O número se baseia em um estudo do Ministério da Justiça de 2015, segundo o qual o ideal seria termos um defensor para cada 15 mil habitantes em situação de vulnerabilidade — aqueles com renda de até três salários mínimos, os quais, no Brasil pré-Covid 19, eram estimados em mais de 150 milhões de pessoas.

 

Apenas oito estados (Acre, Roraima, Amapá, Tocantins, Paraíba, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e o Distrito Federal cumprem a recomendação. Em outras 18 unidades da federação, o número de defensores continua insuficiente. A pior situação é do Paraná, onde há um defensor público para cada 84,8 mil habitantes de baixa renda.

 

Os dados indicam que há Defensoria Pública estadual ou distrital instalada em 1.162 comarcas, correspondentes a 42% do total (2.762). Quanto à Defensoria Pública da União, que atua na Justiça Federal, a situação é ainda pior.

 

Dados do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), compilados neste ano com uma metodologia diferente da usada por Anadef e Ipea, indicam a presença da DPU em apenas 71 subseções judiciárias federais, ou 26,4% do total. Ou seja, em 73,6% dessas unidades jurisdicionais (198 subseções) não há representação da defensoria.

 

Segundo Sérgio Renault, foi com a EC 45/2004 que a Defensoria Pública passou a, com autonomia, ter mais força institucional
Anadep/Diuvlgação

 

Emendas em boa hora

 

Essas estatísticas mostram que o Brasil descumpriu largamente a determinação que ele próprio se impôs em 2014, quando a Emenda Constitucional 80 deu prazo de oito anos (até 2022, portanto) para que houvesse defensores públicos em todas as comarcas do país. Não chegou-se nem perto disso, mas houve avanços. Em 2013, esse índice era de 28% — havia Defensoria Pública instalada em 754 das 2.680 comarcas que existiam à época.

 

Em evento sobre o tema, o relator da PEC 247/2013, o ex-deputado federal Amauri Teixeira, classificou o prazo de oito anos como um erro proposital.  "É claro que esse tempo era para pressionar e reduzir ao máximo a desigualdade. Mas a gente sabe que ainda estamos distantes."

 

A EC 80/2014 foi a mais recente alteração constitucional a impulsionar as Defensorias Públicas no Brasil. Sua aprovação dependeu de uma costura política que envolveu dividir a autoria do projeto com lideranças de perfil conservador, mas comprometidas com a causa. Segundo Amauri Teixeira, o tema era tratado na Câmara com "um desconhecimento monstruoso".

 

O processo de conscientização foi o que marcou os avanços constitucionais da Defensoria Pública nesses 35 anos. A emenda mais relevante aprovada foi a de 2004, que promoveu a reforma do Judiciário e deu à instituição autonomia funcional, administrativa, orçamentária e financeira. A partir da EC 45/2004, as leis de diretrizes orçamentárias passaram a distinguir adequadamente a autonomia da Defensoria Pública.

 

Foi o que reduziu o déficit normativo existente em relação ao Ministério Público, autônomo desde que redesenhado em 1988. E o que deu às Defensorias Públicas o privilégio de se livrar de eventuais pressões governamentais, como um escudo contra situações indesejáveis existentes na política local. Para isso, foi preciso vencer temores de impacto na gestão dos cofres públicos.

 

Ainda em 2003, havia 3.154 defensores públicos na ativa, atuando em 22 estados, em regra ligados ao Poder Executivo e com capacidade de autogestão significativamente limitada. À época, 38,6% dos defensores estavam se preparando para ingressar em outras carreiras do Judiciário, mediante concurso público. Ou seja, não era uma função atrativa.

 

Esse cenário foi descrito em um estudo do Ministério da Justiça que levou à conclusão de que a melhoria das Defensorias passaria pela concessão de autonomias, a legitimação para ajuizamento de ações coletivas, o uso de meios alternativos de solução de conflitos e a possibilidade de apoio multidisciplinar.

 

O diagnóstico sensibilizou o advogado e então secretário especial da reforma do Judiciário, Sérgio Renault, a tratar o tema como prioridade. Em sua análise, "a Defensoria vinha capengando nos estados até o início dos anos 2000". Foi com a EC 45/2004 que a instituição "passou a realmente ter força". Ele acredita que a Defensoria está para o Judiciário como o SUS para a saúde.

 

Membro da constituinte, ex-deputado federal Sílvio Abreu relatou "interesses ocultos" quando a inclusão das Defensorias Públicas
Anadep/Diuvlgação

 

Processo lento

 

Segundo Renault, o fortalecimento de uma instituição como a Defensoria Pública é um processo longo e contínuo. "Não começou em 1988. E não se esgota agora", afirmou ele em evento. Prova disso é que a primeira Defensoria estadual foi instalada ainda em 1954, no Rio de Janeiro. E a última surgiu apenas em 2019, no Amapá.

 

Ou seja, o Brasil levou 65 anos para ter uma instituição que atue gratuitamente em defesa dos vulneráveis em todas as unidades da federação — mais de três décadas já na vigência da atual Carta Magna. E isso só foi possível graças à intensa mobilização da sociedade civil e de suas instituições. A instalação da unidade de Santa Catarina é um exemplo sintomático.

 

Até 2012, o estado só contava com defensores dativos — advogados particulares que atuam em substituição à Defensoria Pública mediante convênio. A inspiração para a mobilização catarinense surgiu em São Paulo, que só em 2006 criou sua Defensoria Pública graças à atuação coordenada de mais de 400 entidades da sociedade civil.

 

O Movimento pela Criação da Defensoria Pública em Santa Catarina e seu slogan "Direito Sonegado" não foram suficientes para vencer a inércia legislativa, mas permitiram à Anadef acionar o Supremo Tribunal Federal. Em março de 2012, a corte deu prazo de 12 meses para o governo catarinense instalar a entidade, em julgamento com críticas ao "severo ataque à dignidade do ser humano", nas palavras do relator, ministro Joaquim Barbosa.

 

Ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo chamou atenção para os próximos desafios que as Defensorias enfrentarão
Anadep/Diuvlgação

 

Interesses ocultos em 1988

 

Mesmo na Constituinte, em meio ao ambiente de reestruturação democrática do país, cenário que permitiu a criação de uma Constituição generosa na garantia de direitos, a inclusão da Defensoria Pública foi controversa e difícil. De acordo com o ex-deputado federal Sílvio Abreu, um dos responsáveis pela vitória constitucional, havia "interesses ocultos que acabaram aflorando".

 

O projeto que culminou na redação do artigo 134 da Carta Magna — que trata da Defensoria Pública — foi debatido exaustivamente nas comissões que precederam a análise plenária. Havia o temor de que o órgão poderia emergir como uma entidade desgarrada e sem controle. E, principalmente, a ideia de que suas funções já estariam totalmente acobertadas pelo Ministério Público.

 

Como contou Sílvio Abreu, foi em um desses debates que o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado federal Ulysses Guimarães, o chamou para fazer uma pergunta: "Você não está confundindo Defensoria com Procuradoria?". A resposta do parlamentar deixou Ulysses entusiasmado e serviu também para dar bom andamento às discussões.

 

Os diários da Assembleia Constituinte, disponíveis no site da Câmara, mostram que 13 de abril de 1988 foi um dia decisivo para a Defensoria Pública. Foi quando Sílvio Abreu discursou no Plenário e defendeu a instituição como uma garantia do acesso à Justiça, impedindo que isso continuasse sendo um privilégio dos 20% da população capazes de movimentar a máquina com seus próprios recursos.

 

"A institucionalização da Defensoria Pública significará uma Justiça para atender, à plenitude, a população brasileira. Uma Justiça sem a Defensoria Pública seria como se fôssemos criar um gigante de aço sobre pés de areia", disse o constituinte, que defendeu a vedação ao exercício da advocacia particular para que os defensores se dedicassem exclusivamente à grande obra de democratização da Justiça.

 

Ele apontou também a importância de dar aos membros da Defensoria Pública a garantia da inamovibilidade, para "impedir que o Poder Executivo, a quem estará subordinada, exerça pressão sobre os defensores públicos, que, em nome dos desassistidos, dos miseráveis, muitas vezes serão levados a advogar contra os fortes, contra os poderosos e até mesmo contra o Estado". "Vencemos aquela votação por apenas 11 votos", relembrou o ex-deputado em evento.

 

Emendas aprovadas pelo Congresso Nacional fortaleceram a Defensoria nos 35 anos de vigência da Constituição Federal
Waldemir Barreto/Agência Senado

 

Daqui para frente

 

Nas Defensorias Públicas do Brasil, 35 anos depois da Constituição, há o que o celebrar e também o que melhorar. Defensor no Rio de Janeiro e ex-presidente da Anadef, André de Felice lembra que já houve propostas de revisão constitucional para excluir o artigo 134. "A gente não pode se iludir. A qualquer momento podemos ter retrocessos sérios e graves."

 

Defensor público do Distrito Federal, Stéfano Pedroso prefere contemporizar ao dizer que tudo aconteceu muito depressa. "A Defensoria Pública está mudando o país. Processo todo mundo faz. Daqui a pouco tem inteligência artificial fazendo. Esse trabalho da Defensoria não tem máquina que faça: atender à população, fazer conciliação, ir às escolas, aos hospitais...", listou ele.

 

Para Sérgio Renault, que hoje preside o Instituto Innovare, responsável por premiar boas práticas no Poder Judiciário, as Defensorias Públicas devem se atentar à necessidade de diversidade em seus quadros e, principalmente, lutar contra a tentação corporativista.

 

"O corporativismo é um problema das carreiras de Estado. Os defensores devem fugir dessa questão, porque o bem maior que se procura é mais importante do que questões comezinhas que só dizem respeito à própria categoria", afirmou ele.

 

Já para José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União, a instituição deve lutar para ter direito à vitaliciedade, o que significa manter o cargo pelo resto da vida e apenas perdê-lo por sentença judicial definitiva. Hoje, os defensores têm estabilidade, mas podem ser demitidos por processo administrativo ou insuficiência de desempenho.

 

De acordo com Cardozo, a mudança servirá como garantia contra o poder político do Estado e como status institucional que imponha respeito na República, pela equiparação a juízes e membros do Ministério Público. "Não podemos ter defensores estáveis e acusadores vitalícios."

 

O ex-ministro afirma ainda que, paralelamente, será necessário um órgão nos mesmos moldes do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, com participação da sociedade e destinado a apurar desvios, realocações e privilégios na Defensoria. "A autonomia é fantástica. Mas, se ela não remonta à sociedade, pode trazer problemas graves que podem destruir a Defensoria como um todo. Basta uma maçã podre para ser usada contra o cesto."

 

 

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