No auge, o Quilombo dos Palmares ocupava uma área de quase 100 mil quilômetros na Capitania de Pernambuco, região hoje pertencente ao estado de Alagoas. Era praticamente do tamanho de Portugal. Ali viviam 30 mil pessoas. Uma enormidade.
O território criado por escravizados fugidos nos séculos 16 e 17 durou desde os anos 1580 até 1695. Seu líder mais importante foi o último, conhecido como Zumbi dos Palmares (1655-1695), que esteve à frente do conjunto de comunidades de 1678 a 1695 — sim, este é um ponto importante: pesquisadores contemporâneos entendem Palmares como um conjunto de comunidades interconectadas.
“O quilombo era dividido em mocambos, núcleos de povoamento ou unidades quilombolas menores. Cada mocambo era liderado por um parente ou chefe de confiança de Ganga Zumba [o poderoso líder]. Zumbi era líder inicialmente de um dos mocambos”, explica a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, membro da Rede de Historiadorxs Negrxs e autor de, entre outros livros, Entre a Escravidão e a Liberdade: africanos e crioulos nos tempos da Abolição .
“A organização era, na verdade, uma reprodução da organização social que os africanos conheciam na sua terra natal, principalmente em Angola”, completa ela.
Tudo indica que Zumbi nasceu livre, filho de escravizados fugidos, batizado na igreja católica, e alfabetizado em português e latim. Ainda na adolescência, teria ido ao quilombo e lá se envolveu com uma liderança. Ele era sobrinho de Ganga Zumba (1630-1678).
Sem acordo com os portugueses
Quando o então líder estava a aceitar um acordo de paz com a Coroa portuguesa, em que os moradores de Palmares seriam oficializados livres mas o território se submeteria às regras do reino lusitano, houve uma reviravolta e Zumbi assumiu o comando.
"Ganga Zumba e Zumbi foram pessoas diferentes. Não são apenas personagens históricos ou lendas; foram pessoas de carne e osso", diz o historiador Jonatas Ribeiro, professor da Universidade de São Paulo (USP). "Ambos foram importantes lideranças de alguns dos quilombos que constituíram o que hoje denominamos como Palmares, uma grande região encravada no interior do atual estado de Alagoas, a Serra da Barriga, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1986."
“Ganga Zumba foi outro líder de Palmares, com quem Zumbi divergiu”, explica o historiador Alain El Youssef, pesquisador do consórcio acadêmico internacional Mecila. "Ganga Zumba queria fazer um acordo com os portugueses, que consistia basicamente em aceitar um tratado de paz que garantisse a liberdade dos quilombolas em troca da não acessível de mais escravos forgidos em Palmares. Já Zumbi preferiu voltar contra o acordo e enfrentar Ganga Zumba para manter a resistência dos quilombolas às tropas portuguesas, com quem estavam em luta."
Santos conta que pelos termos do acordo, "seriam libertos alguns parentes de Ganga Zumba" em troca da paz. Escravizados recém-chegados ao quilombo ficaram de ser devolvidos a seus proprietários, novos fugitivos não puderam mais ser aceitos e os quilombolas se mudaram para o Vale do Cucaú — alguns habitantes de Palmares chegaram a se mudar para essa região.
Zumbi não aceitou.
"É por isso que ele foi eleito por setores do movimento negro como símbolo da resistência negra. Ele se tornou a representação de quem não negocia com o inimigo, ainda que tenha pago, no final das contas, com sua própria vida", completou El Youssef.
Na agenda de Zumbi houve resistência não só à escravidão, mas também ao domínio português. Mas seu reinado não teria sucessores.
Incomodadas, as autoridades coloniais não tardaram a armar uma ofensiva contra o quilombo. Em fevereiro de 1694, uma expedição expedida pelo bandeirante Domingos Jorge Velho (1641-1705) conseguiu invadir e destruir Palmares. Zumbi ficou ferido, mas não morreu.
Ele se refugiou provavelmente em Serra Dois Irmãos, no atual município de Viçosa, Alagoas. Em novembro do ano seguinte, traído, acabou sendo surpreendido por um novo ataque de portugueses. Foi morto e decapitado no dia 20 de novembro de 1695.
Em carta datada de março do ano seguinte, o governador de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro (1680-1718) escreveu: "determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de tudo com os Palmares".
Ribeiro lembra que as "pesquisas historiográficas recentes" demonstram a importância de uma dimensão africana, "angolana, para ser mais exato", de organização político-social "nas várias comunidades quilombolas que compunham a região de Palmares durante o século 17". “Isso ocorre porque grande parte da população desses quilombos era originária de regiões que hoje compõem Angola, na África.”
“Essa é uma evidência de que a presença de pessoas africanas, com suas formas de vida e culturas, é inseparavelmente parte da formação da sociedade brasileira”, completa o historiador. "Palmares é apenas um exemplo disso, e isso é importante de ser conhecido e reconhecido como parte de nossa memória social."
Legado e simbolismo
“A figura de Zumbi virou símbolo de resistência fundamentalmente em razão de ele não ter aceitado os termos de um acordo de trégua e paz teria sido firmado entre Ganga Zumba e o governador de Pernambuco, Pedro de Almeida, em 1678”, resumiu a professora Santos.
Zumbi dos Palmares foi líder do Quilombo dos Palmares, entre 1678 e 1694. Houve conflito entre eles próprios, culminando na morte de Ganga Zumba. Com novo fôlego, os quilombolas combateram as investidas viabilizadas pela administração colonial até 1694, quando o paulista Domingos Jorge Velho liderou, por fim, um cerco vitorioso. Zumbi, que em uma primeira notícia teria se suicidado para não voltar ao cativeiro, fora na verdade capturada no ano seguinte, a 20 de novembro de 1695; e teve sua cabeça cortada, salgada e exposta em praça pública.
Para o professor da USP, a importância de Palmares para a história brasileira não se resume às relações políticas adversas com a Coroa portuguesa e seus representantes coloniais, mas também "às redes econômicas" e "ao medo que a organização social dos quilombos causava nas autoridades ". “Por isso, produzimos muitos documentos e diversas representações sobre Palmares e suas lideranças ao longo do tempo”, acrescenta ele.
"Dentre essas representações, aquela que viu em suas lideranças, especialmente em Zumbi, uma imagem de herói defensor do povo negro foi a escolhida em 1971 [...] como símbolo que deveria expressar e representar as lutas negras contra o racismo e a exclusão social, então existentes na sociedade brasileira dos anos 1970", diz ele.
"Houve muitos investimentos dos movimentos negros para que essa representação política de Zumbi figurasse como uma outra possibilidade de visualizar a história do negro no Brasil, não mais atrelada à figura do escravizado, mas sim à de alguém que se insurgiu contra o sistema dominante e liderou um povo em busca de redenção", afirma Ribeiro.
O historiador ressalva que isso são "representações", isto é, "narrativas e imagens sociais que têm a intenção de construir memórias positivas da história do negro" e que não necessariamente "correspondem ou têm lastro em experiências históricas concretas". Ele reconheceu que Zumbi e o 20 de novembro foram "alçados como símbolo da luta contra o racismo e as desigualdades sociais na sociedade brasileira". “E devemos nos esforçar para que assim continue”, frisa.
O historiador El Youssef ressalta que é preciso lembrar que, assim como outros líderes negros anteriores ao processo de abolição, a luta de Zumbi não tinha relação direta com a abolição da escravidão no Brasil. “Além do quilombo de Palmares ser uma experiência histórica do século 17, dois séculos, portanto, antes da abolição da escravidão brasileira, é preciso ter em mente que Zumbi não era abolicionista e nem imaginava um mundo sem escravidão”, pontua.
"Isso seria impensável na época em que ele viveu, quando a escravidão não era moralmente condenada, como passou a ser no final do século 18. Pelo contrário, a derrota do quilombo de Palmares reforçou a escravidão brasileira ao tirar do caminho seu principal foco de tensão naquele momento", acrescenta o pesquisador.
“Em todo caso, a ressignificação de sua memória no século 20 e 21 é fundamental para a liberdade e as lutas pela plena cidadania dos afro-brasileiros no século 21”, concorda ele. "Essa é uma dimensão importante das disputas políticas atuais e é aí que reside a atual importância de Zumbi. Mais do que histórico, a figura de Zumbi é um elemento central da memória de toda uma população que continua marginalizada e assassinada todos os dias."
O jornalista Guilherme Soares Dias, pesquisador e fundador do Guia Negro, lembra ainda que há um negacionismo sobre a história de Zumbi. “No último governo [a gestão de Jair Bolsonaro], de direita, houve uma tentativa de negação da história dele, uma tentativa de matá-lo pela segunda vez. Mas isso faliu, porque hoje a gente tem uma data que o homenageia [o 20 de novembro é considerado feriado nacional desde 2023] e mais de dez estados homenageando Zumbi em diferentes estados brasileiros", diz ele. "É muito legal perceber que ele se transformou em uma referência de luta pela liberdade."
*Via DW
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