Na estação seca, o azul do céu no Pantanal parece derreter sob o sol de quase meio-dia. Mas Patrícia ignora o calor de 40°C, emerge da mata e caminha com elegância felina à beira de um rio pantaneiro, visão de um Brasil selvagem cada vez mais presente na imaginação do que na realidade. Mas Patrícia é real. Mergulha e reaparece num campo flutuante de ninfeias em flor. Patrícia desconhece ter um nome. Mas já se acostumou com as pessoas como parte da paisagem do Pantanal.
Situado no fim da Rodovia Transpantaneira, Porto Jofre, em Poconé, Mato Grosso, tem uma das maiores concentrações de onças-pintadas do mundo. Lá elas são soberanas e o ser humano, um observador deslumbrado. A onça-pintada Patrícia é uma das mais de 300 de sua espécie em Porto Jofre, onde não são apenas numerosas. São, sobretudo, mais desinibidas e menos desconfiadas de seu maior inimigo e único predador: o ser humano.
Muitos Brasis
A onça-pintada é uma síntese da natureza do Brasil. No topo da cadeia alimentar, ela é símbolo da biodiversidade e só existe onde o equilíbrio impera. A espécie já perdeu 51% de seu território. Resiste na Amazônia (onde dificilmente é visível na mata) e no Pantanal, mas tornou-se rara no Cerrado e está quase extinta na Mata Atlântica e na Caatinga. Não existe mais no Pampa.
— Se há onça, há natureza preservada. Terra de onça é terra de esperança e de desafio de conservar a riqueza viva — diz Fernando Tortato, um dos maiores especialistas em onças do país e pesquisador da Panthera Brasil, ONG dedicada à conservação de felinos selvagens.
Acuada por séculos de perda de habitat e caça, a onça se recolheu às profundezas das florestas. Se mostra sem inibição só no Pantanal. E na usina de vida pantaneira presas e predadores convivem lado a lado. Tuiuiús e garças-mouras dividem a mesma árvore com gaviões-pretos. Capivaras, veados e jacarés compartilham os alagados.
— Mais que riqueza em número de espécies, o Pantanal se notabiliza pela abundância das populações delas — frisa Walfrido Moraes Tomas, cientista da Embrapa-Pantanal, em Corumbá (MS), especialista em biodiversidade pantaneira. Tomas é um dos autores de estudo publicado na Scientific Reports que calculou o impacto das queimadas em 2020 na fauna e estimou em 17 milhões o número de vertebrados mortos.
Shakira e Van Gogh
Além de Porto Jofre, os outros lugares com grande concentração de pintadas são a Estação Ecológica de Taiamã, em Cáceres, também no Mato Grosso e de acesso restrito; e o Refúgio Ecológico Caiman, no Pantanal Sul (MS). Nada menos que 304 onças foram observadas na região de Porto Jofre e da Transpantaneira em 15 anos. O número de indivíduos diferentes registrados cresce a cada ano. Atualmente, cerca de 90 pintadas são vistas por ano. Elas estão listadas num guia virtual como “Shakira”, “Van Gogh” ou “Borboletinha”, nomes escolhidos por quem as fotografou primeiro. A coletânea é mantida pelo Projeto de Identificação de Onças (Jaguar ID Project), pela Panthera e pela Associação Civil do Ecoturismo no Pantanal Norte (Aecopan).
Conhecida como o espírito das matas por ser quase impossível de ser vista graças à camuflagem perfeita e aos hábitos esquivos, a onça se materializa à frente dos olhos no Jofre. Caso de Patrícia e seus dois filhotes. Com quase 2 anos, Kasimir e Krishna são adolescentes. Em breve, deixarão a mãe em busca de seus territórios, mas por enquanto ficam ali para aprender. Diferentemente de grandes gatos, leões e tigres, a onça não persegue a presa. Sua especialidade é surpreendê-la com bote na água, na terra ou no ar.
O jaguaretê, um dos nomes indígenas das onças, tem mordida tão forte que pode esmagar um crânio humano. Suas garras são capazes de arrancar pele e músculos com uma só patada. À medida que a felina avança pela margem do rio, é possível ouvir os guinchos de gaviões e a gritaria de aracuãs e curicacas. Mas a onça, ou jaguaretê, não mata por prazer e vai aonde há comida.
Ressurgimento
A abundância de alimento, como jacarés e capivaras, é um dos fatores que explicam a alta concentração de pintadas no Pantanal Norte. Outro motivo é a combinação de combate à caça e aos coureiros, que ainda agem no Vale do Javari, na Amazônia, pelo Exército na primeira década do século 21. Além disso, acrescenta Tortato, a grande cheia de 1974 reduziu o conflito entre moradores da região e felinos, pois muitas fazendas foram abandonadas.
Com menos perseguição, as onças foram reaparecendo e, quando surgiam, eram a atração para turistas no Jofre, nos idos de 2007. Donos de pousadas e guias captaram a mensagem. Viva, a onça vale bem mais do que morta. Pesquisadores estimam que, apenas na região, as onças já trazem lucros de US$ 10 milhões por ano em turismo.
A pratica de alimentar onças foi proibida em 2011. O humano que desrespeita a lei corre risco de virar comida, mesmo não estando entre as 85 espécies listadas do cardápio da pintada. A lição foi apreendida, e os ataques são raros. No Pantanal não há estatísticas, mas estudo da Universidade Federal do Amazonas listou 77 ataques na Amazônia, 13 antes de 1950 e 64 de 1950 a 2018. Não à toa a sabedoria popular aconselha a não cutucar onça com vara curta: quase sempre as vítimas são caçadores. A taxa de ataques no Brasil é baixa (0,94/ano), menor do que as estatísticas mundiais envolvendo outros felinos: leopardo (29,91), tigre (18,80) e leão (16,79).
Pesquisadores, ambientalistas, guias e barqueiros descobriram que o melhor caminho era, aos poucos, acostumar as onças à aproximação humana. No Jofre, pequenas lanchas levam turistas para observarem as onças nas margens dos rios e corixos. Nos riachos pantaneiros, elas param para beber água, descansar e caçar capivaras e jacarés. De início, os machos eram os mais desinibidos. Porém, são mais nômades e fluidos. As fêmeas, mais apegadas ao território, foram se chegando aos poucos e, com elas, os filhotes também aprenderam a aceitar o contato humano.
— De geração em geração, o Jofre passou a ter onças habituadas a nós — diz Tortato.
Um caminho perigoso
Mas no caminho das onças, estão as mudanças climáticas e os perigos da seca e do fogo. O macho Ousado que no fim de agosto copulou com Patrícia no Corixo Negro, quase morreu queimado em 2020, quando 4 milhões de hectares foram dizimados, o equivalente a um terço do Pantanal. As pintadas também perdem território para o desmatamento, que converte áreas naturais em pastagens e plantações.
Entre os mitos que as ameaçam, está o de que onças estão por trás de ataques sistemáticos ao gado. O risco para elas pode ser grande perto de Taiamã, por exemplo, uma ilha no Rio Paraguai, cuja densidade de onças é maior do que a do Jofre. Mas o entorno da unidade de conservação é mais hostil devido ao conflito com fazendeiros e à caça ilegal. A incompatibilidade entre onça e a pecuária não têm base científica. Pesquisas mostram que, de cada cem cabeças de gado perdidas no Brasil, apenas duas são de animais predados por onças. A maior parte da mortalidade do rebanho deve-se a doenças infeciosas e animais que atolam em lama.
— A onça leva a culpa por tudo. Doença, fome, sede, acidentes, tudo entra na conta da onça, e é ela que leva o tiro e morre — lamenta Ailton Lara.
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