Em Campo Novo dos Parecis (MT), oito aldeias indígenas abrem as portas do próprio “quintal” para apresentar seus ritmos, ritos e belezas naturais da região para os turistas. A prática, denominada etnoturismo, é também complemento de renda para a população Haliti-Paresi, que vive principalmente da agricultura — onde peixes e caça são cada dia mais raros por conta do avanço das lavouras.
Na porta de entrada para viver uma imersão na cultura desse povo, a natureza abraça o visitante como um oásis em meio às terras agrícolas que compõem a paisagem predominante no estado. O município pertence à região que abriga duas terras indígenas (TI) da mesma etnia: Utiariti e Paresi, com mais de 1 milhão de hectares e 65 aldeias, das quais 17 estão em Campo Novo.
Mais que uma imersão cultural, o tempo percorrendo os pelo menos 35 quilômetros de estrada de terra permite ao visitante despir-se dos estigmas, preconceitos e valores arraigados. O tempo é suficiente para abrir caminhos em busca de conhecer a riqueza das tradições, rituais de passagem, artes de batalha, técnicas agrícolas e artesanato, típicos da etnia.
O povo Haliti-Paresi tem uma tradição milenar na região localizada no divisor das águas das bacias do rio Amazonas e do rio Paraguai, no ponto de encontro entre a Floresta Amazônica e o Cerrado. Atualmente, as TIs abrigam representantes dos subgrupos Kozarene, Waymare, Katxiniti, Warere, Kahete e Enomaniyere.
Boas-vindas às hatis
O cacique Narciso Kazoiazaese, de 75 anos, é um dos líderes indígenas mais velhos da região. Sem demonstrar qualquer peso da idade, é ele quem conta histórias e acompanha os visitantes por dentro da trilha de 940m que leva às imponentes quedas d’água. Elas dão nome à aldeia Quatro Cachoeiras.
O vigor do líder pode ser explicado pelos costumes: alimentação -preferencialmente- a partir da caça, e a substituição “do volante” pela caminhada. Todos os dias, ele percorre a trilha ao menos três vezes para garantir que não há nenhum galho fora do lugar, sempre a postos para apresentar o “próprio quintal” no melhor estado aos visitantes.
“Eu fico muito feliz com as visitas. Podem vir, os caminhos estão abertos para vocês, vocês não precisam ficar acanhados. Por que eu digo isso? Porque gente de São Paulo, Rio de Janeiro, quando ouve falar em índio, pensa que índio é bicho, que não sabe conviver com vocês. Por isso sou a favor desse trabalho”, comentou o cacique.
A comunidade se mantém como uma das mais fiéis à cultura dos antepassados, de toda a região. Os 61 moradores, de nove gerações — entre filhos, sobrinhos, bisnetos e tataranetos — da família ainda vivem em hatis (casa tradicional, em Aruak). A residência é símbolo da identidade, organização sociocultural e territorialidade desse povo.
Contudo, os rastros da cultura dos mahalitihyarenae (o homem branco) já se misturaram aos costumes de aldeias da região. A partir da mescla de etnias, há locais como a aldeia Sacre II, em que o idioma originário, Aruak, foi substituído pelo português. A alimentação tradicional com carne de porco do mato e “beijús” de formiga saúva foi alterado para um cardápio mais familiar aos turistas — como arroz, feijão e macarrão.
“Existe um certo preconceito das pessoas de fora, porque dizem ‘eu não sei como é a comida do índio’. Mas as nossas cozinheiras são muito boas. Geralmente, a gente não vende a comida tradicional nossa, porque quando oferecemos, a pessoa come um pedacinho e não quer comer mais, e fica com fome”, explica Claiton Francisco Terena, 37, responsável pela parte de turismo no Salto Belo.
Respeitadas as particularidades, cada uma oferece um tipo de experiência. As opções abrangem contemplação e banho nos rios e cachoeiras, imersão na cultura a partir de rituais e histórias, aluguel de vestes tradicionais e pinturas, além de atividades de turismo de aventura, como rafting e rapel.
Complemento da renda
A proposta de cada aldeia é acordada com a comunidade como um todo, em um formato normatizado em instrução normativa (IN nº 003/2015) da Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo o órgão, dos 305 povos indígenas do país, 37 oferecem atividades registradas para fins de visitação turística.
A iniciativa de receber turistas na região começou com um movimento espontâneo das comunidades indígenas, ao perceber que os visitantes, sabendo da riqueza natural que ali estava, batiam na “porta” das aldeias pedindo autorização para conhecê-las. Por intermédio da prefeitura, as comunidades originárias receberam apoio do Sebrae do Mato Grosso na estruturação do etno/ecoturismo.
Segundo o secretário de Cultura e Turismo da cidade, Ivan Carlos Terribele, a proposta da gestão municipal é oferecer meios para que os indígenas trabalhem pelo próprio sustento.
“O assistencialismo a gente não dá, foi cortado quando assumimos e recebemos bastante críticas da comunidade, porque o assistencialismo foi cortado a zero. Isso teoricamente obriga que eles empreendam e comecem a caminhar com as próprias pernas, eles não vão depender mais do poder público”, afirma.
O projeto do Sebrae teve início em 2021, com um diagnóstico inicial, e deu origem a um trabalho pactuado com as lideranças, buscando resgatar a história e a cultura da etnia. O objetivo é posicionar as aldeias como destinos de etnoturismo, além de implementar segurança nas operações de aventura na natureza acrescentando elementos do ecoturismo.
Berço dos Paresi
É na aldeia Ponte de Pedra, em Campo Novo — das oito, a que tem o acesso mais complicado —, que descansa a riqueza mais preciosa da etnia. Conta o mito que foi lá que o herói mítico Wazare saiu de uma fresta e deu origem ao povo Haliti-Paresi. Ele teria emergido do monumento, que segue de pé sobre um dos afluentes do rio do Sangue.
Jackson Wazare, liderança da aldeia e sobrinho do cacique, defende que o turismo é uma ferramenta importante para que o mundo “conheça a história do povo Paresi”, e um meio de “sustento para que a comunidade possa sustentar a família preservando o local de origem”.
O sobrinho do cacique da aldeia se emociona ao contar sobre o mito que sempre ouviu do avô, antes de dormir. Ele explica que por um período, as pessoas que moravam ali deixaram o local e as riquezas naturais quase deixaram de existir. Por conta disso, a família decidiu retornar com o objetivo de preservar o lugar.
“A ponte de pedra é o local de origem do nosso povo, que é um local sagrado. O nosso Deus está muito contente que agora o mundo vai conhecer a nossa etnia”, completou.
Antes dessa parte da família decidir retornar ao local, o avanço das fazendas e do agronegócio ameaçavam a preservação do lugar. O plano, segundo ele, era que hoje houvesse ali uma usina hidrelétrica. “Eu era jogador de futebol, já morei em outros países, mas resolvi voltar para cá pra preservar esse nosso tesouro”, comenta.
Sustento no agronegócio
As aldeias indígenas da região sobrevivem a partir do rendimento de cooperativas agrícolas e da cobrança do direto de passagem, taxa destinada a veículos que trafegam dentro da TI. Uma das organizações, a Cooperativa Agropecuária do Povo Indígena Haliti Paresi (Coopiparesi) é composta exclusivamente por indígenas e divide os rendimentos de forma percapita nas aldeias “associadas”.
O turismo é mais uma forma para complementar a renda dessa população. Segundo estimativa do Sebrae, a estruturação da rota como destino de etno e ecoturismo aumentou em cerca 60% o ticket médio dessas comunidades, possibilitando que eles tenham um rendimento quase duas ou três vezes maior, a partir de uma cartela mais extensa de atrações ao turista.
Contudo, na visão do cacique Rony Walter Azoinayce, da Aldeia Wazare — a primeira a implementar o turismo na região — a importância da atividade não é apenas renda.
“É mostrar ao mahalitihyarenae (homem branco) que o indígena não é como ele pensa. É importante que conheça como somos, como vivemos, como pensamos. Por outro lado, mostrar aos outros como somos nos obriga à manutenção e às vezes ao reaprendizado de nosso legado cultural, o conhecimento de nossos rituais, danças, cantos, pinturas, língua, roça tradicional, animais sagrados”, frisa.
Respeito à cultura
O etnoturismo é definido pelo Ministério do Turismo como a prática que constitui de atividades turísticas envolvendo a vivência e experiências autênticas, em contato direto com os modos de vida e identidade de grupos étnicos. A proposta deve estar alinhada a outra categoria, denominada turismo de base comunitária.
A professora do Centro de Turismo da Universidade de Brasília (UnB) Mara Flora Lottici Krahl, frisa que é fundamental se atentar “ao protagonismo dos visitados — neste caso, os indígenas, como agentes e beneficiários dessa prática turística, com atividades planejadas com a comunidade e com pessoas especializadas no assunto”.
“A finalidade maior deve ser a valorização e divulgação da cultura de cada povo. Ou seja, há de se tomar cuidado para que as comunidades não se tomem o que se chama de ‘espetacularização do exótico’ expostos à mera curiosidade do turista”, alerta.
Entre os benefícios, a especialista elenca geração de renda e oportunidade de pensar e ressignificar-se enquanto cultura, podendo valorizar seu território, rituais, costumes e autoestima a partir do interesse e aceitação por meio do olhar externo.
No entanto é importante se atentar para possíveis malefícios, do ponto de vista das comunidades. “Algumas características do turismo podem trazer conflitos culturais. Por exemplo, a valorização da mão de obra jovem e feminina, gerando renda maior às mulheres, o que pode ser um problema em algumas sociedades mais despreparadas”, exemplifica.
“A visitação participativa pode ser uma forma de interação entre visitantes e visitados, mas é muito tênue a linha que leva à espetacularização. Por isso a necessidade de planejamento”.
A repórter viajou a Campo Novo dos Parecis (MT) à convite do Sebrae Nacional.
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