Eles estão por todos os lados, quase invisíveis aos olhos da nossa sociedade.
Absorvidos pela rotina que nos impõe horários, trajetos e uma infindável lista que acaba construindo nossa identidade, lá vamos nós absortos e absorvidos.
O motivo deste escrito foram duas cenas que presenciei neste domingo. Era muito cedo quando decido sair de casa para dar uma volta de moto e colocar as ideias em dia. Terceiro dia do ano e lá ia eu, mesmo que longe da rotina do dia a dia, ia eu na rotina do motociclista.
Moto abastecida, roupa de viagem e eis que passando pela Avenida Miguel Sutil em Cuiabá, a primeira cena. O encontro de dois mundos. Ainda bem que eu estava devagar o bastante para presenciar parte do acontecido, que passo a narrar pra você.
De um lado um morador de rua com um saco nas costas, do outro um distinto senhor com seu tênis caro, roupa combinando, fazendo a sua caminhada matinal.
Quando os dois se cruzaram o morador de rua abriu um sorriso largo e acenou a mão num sinal de bom dia. Não sei se o outro senhor respondeu, o transito acabou engolindo a cena, mas não da minha memória, segui fazendo uma reflexão de tudo aquilo.
Não havia diferença nenhuma entre aqueles dois seres humanos. A única questão aqui é o abismo econômico que colocou um e outro em postos equidistantes da tabela.
O mundo está cheio de pessoas que desistiram do tradicional modo de vida. Pessoas que num primeiro momento acreditaram estar fugindo da rotina e depois acabaram desistindo de si mesmos. O problema é que mesmo o morador de rua tem sua rotina, ninguém escapa dela.
A questão é que quanto maior for este abismo econômico mais invisível vão ficando aqueles que estão no lado menos favorecido. Pessoas que vagam a espera de um bom dia, de uma conversa amiga, mas que entra ano e sai ano, vão desaparecendo numa esquina qualquer.
A segunda cena me veio a retina na estrada que liga Cuiabá a Chapada dos Guimarães. Um homem subia a serra a pé. Dezenas de carros e motos num ir e vir constante, tão constante quanto os passos que o levava determinado em direção a Chapada. De carro ou de moto são 60 minutos de uma viagem belíssima, regada a belas paisagens e muitos atrativos pelo caminho.
Para aquele homem não teve pamonha na estrada, não teve cachoeira, não teve guia turístico nem parada pelo caminho. Determinado ele seguia com seu saco nas costas. Invisível ele seguiu a pé. Já eram quase 11 horas da manhã quando decidi voltar pra casa. Encontrei o mesmo homem já a poucos quilômetros do seu objetivo. Quando o vi de longe diminui a velocidade e me concentrei em seu semblante. Rosto molhado pelas horas de caminhada, olhar fixo na estrada. Pensei em parar, mas o transito mais uma vez me engoliu. Nossas estradas não foram feitas para que paradas bruscas aconteçam. Sem acostamento não tive outra alternativa a não ser seguir viagem.
No caminho estas duas imagens brigavam em minha mente. Quantas pessoas mais conseguiram prestar atenção àquele ser humano que ia. Muitos carros passaram, mas a ele não sobrou carona, não teve ajuda, enfim, só restou mesmo a estrada e a determinação de chegar. Quantos bom dias mais recebeu aquele outro. Quantos bom dias recebe no dia a dia.
Quando o quarto dia do ano chegar, trará em suas asas a energia de uma segunda-feira e com ela a rotina causticante que vai lançar cada ser humano dessa terra pra cá e pra lá. Carros caindo aos pedaços disputarão espaço com carros de luxo recém saídos da concessionária. Garis passarão recolhendo o que sobrou das muitas festas e cada um cairá invariavelmente em sua rotina.
Aos invisíveis caberá o papel de continuar vagando. Ora na cidade catando latinha, ora na estrada catando sonhos.
Antigamente a figura destes andarilhos era utilizada para assustar as crianças. Quem nunca ouviu a história do homem do saco que passava a roubava as crianças peraltas, hoje nem isso.
Que mundo é esse.
*Luiz Fernando Fernandes é jornalista em Cuiabá, Mato Grosso.
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