(Em homenagem ao seu centenário, 1994)
"Dia 23 de agosto de 1994, Olyntho Neves, mais conhecido como o "Bugre" do Bar Moderno, faria 100 anos. Marido de Irene Novis Neves e pai de Gabriel, Yara, Pedro, Inon, Ylcléa, Antonieta, Olyntho, Aracy e Ana Beatriz, ele foi também o meu sogro. Em meu nome, do meu marido Pedro e das minhas filhas Janaína e Manaíra, eu lhe presto esta pequena homenagem - dar vida a fragmentos de lembranças particulares que tenho dele e relembrar a sua relevância como cidadão participante do cotidiano cuiabano e mato-grossense.
Conheci o velho Bugre já sem o “charme” da moldura histórica e imortal do "Bar Moderno", que ele conduziu por meio século e que já foi, merecidamente, consagrado como um patrimônio dos cuiabanos. Naquela esquina da Praça Alencastro, construiu-se parte da memória cultural de Cuiabá, consolidando-se, também, como um “tambor” de ressonância política, sobretudo no pós-45.
Não raro, era ali que se encontravam e se resolviam muitas divergências partidárias, sob os olhares atentos do povo, que custou a entender porque alguns "inimigos" ferrenhos das campanhas eleitorais, ficavam "juntos e abraçados", após acaloradas sessões legislativas (de acordo com depoimento de políticos da época). Sem dúvida, foi naquele parlamento "informal" do Bar Moderno (ou bar do Bugre, como ficou conhecido), que muito se exercitou a prática conciliatória (e de "arranjo") que, apesar dos conflitos internos, caracterizou a cultura política mato-grossense. E, sempre sob a notável discrição do "maestro" que regia aquele espaço pluralista.
Sempre me senti instigada por esse aspecto peculiar do Bar Moderno e, também por isso, sempre me perguntei qual seria a ideia de "modernidade” que o jovem Bugre construiu na sua cabeça, no início dos anos 20, em Cuiabá.
Que ideias eram aquelas que deram vida tão longa ao Bar Moderno? Seriam os sorvetes? A localização privilegiada, para apreciar o "footing" no Jardim Alencastro ou para acompanhar a retreta, no coreto do mesmo jardim? A ideia de modernidade seria a garantia da cerveja gelada para apaziguar os torturantes calores, após o banho de rio nas praias do Cuiabá, do Coxipó e do Ribeirão? Ou, talvez, para rever os amigos e refrescar a sede, após as peixadas e as sestas? Seria aquele o ponto de referência para os encontros, antes e depois da missa, na Igreja Matriz? Quem sabe, a tal "modernidade" não fosse pura e simplesmente, o espírito empreendedor do jovem e "moderno" Bugre que, ali, soube propiciar o "clima" democrático para a passagem e o encontro de todas as classes, de todas as ideias, de todas as idades, de todos os interesses?
Para além da referência comunitária, o Bar Moderno foi, também, a trincheira "do Bugre" para a vida. E para a conquista de respeito e de amigos. Ali ele plantou e colheu o sustento digno para a família de nove filhos (e até para o luxo de mandar alguns para estudar no Rio de Janeiro, cumprindo a sua determinação de oportunizar - lhes a melhor educação). Ali ele fez a sua história e participou da história, da cultura, da política e do cotidiano dos cuiabanos e dos mato-grossenses durante meio século.
O seu entendimento da "modernidade" não podia ser transferido. Qualquer que fosse esse entendimento, ele o exerceu com sabedoria. Era uma conquista pessoal do cidadão Bugre e da sua dimensão pública. Preferiu cerrar as portas, indenizar condignamente os seus empregados, alugar os espaços do ex-Bar, para manter-lhe o sustento de homem simples e de vida modesta, e mandar rezar uma missa. Só então tomou posse definitiva de uma nova trincheira - a cadeira de balanço, na qual se manteve até o fim.
Foi assim que o conheci (em 1972) e sempre tenho a sensação de que, lamentavelmente, deixei de conviver com a sua melhor parte.
Nunca entendi muito bem se ele era feliz ou infeliz dentro do seu pijama impecável, na cativa cadeira de balanço (o seu cativeiro?), fumando irreverente e impunemente o seu longo cigarro Hilton (até quase os 80 anos). Já então, quase sempre quieto e calado, batia com ritmo a mão esquerda (da aliança) no braço da cadeira, produzindo um som peculiar que ele acompanhava com um suave e musical assobio: talvez revelando insatisfação, ansiedade, vontade de voltar ao mundo? Ou, pelo contrário, alegria de "dever cumprido"? Parecia-me sempre muito digno, na sua nova condição - aprendiz e mestre na arte da resignação, após uma vida dinâmica e de amplas fronteiras.
Quase nada o fazia sair da cadeira de balanço, o novo “balcão” do, agora, velho “Bugre”. Nem mesmo a justa (e talvez tardia) homenagem da Associação Comercial, que recebeu em sua casa, no seu mundo privado.
Filhos e netos o reverenciavam. Era em torno dele que se realizavam os almoços domingueiros, o encontro semanal da família Novis Neves, quaisquer que fossem suas atividades ou responsabilidades durante a semana. Ali eles eram, apenas, os filhos, genros, noras e netos de Bugre e de Irene. Embora ele já não participasse das iguarias nem do movimento barulhento dos netos, continuava sendo o “imã” que atraía a convergência familiar. Sempre foi, soubesse, ou não, disso.
O velho Bugre da cadeira de balanço às vezes gostava de contar algumas histórias, para quem tivesse interesse em ouvir. E o fazia admiravelmente bem. Dessas reminiscências, eu gostava particularmente da sua aventurosa (e tortuosa) primeira viagem de Cuiabá ao Rio de Janeiro, nos “idos” tempos. Ele contava essa história em detalhes, com um entusiasmo jovem sempre renovado e eu estimulava a renovada repetição. Talvez tenha sido o prazer compartilhado dessa história a minha mais grata lembrança do Bugre. Eu simplesmente adorava vê-lo reviver aquela aventura, em cujo percurso aprendi a avaliar o isolacionismo e a persistência dos mato-grossenses.
Não creio que eu tenha sido uma pessoa especial para o Bugre, já na fase da cadeira de balanço, com uma família de nove filhos que rapidamente se multiplicava numa multidão confusa e barulhenta, sobretudo nos domingos e nos dias especiais. Mas, tenho absoluta certeza, de que o momento dessa "aventura jovem" era especial para nós dois.
Ele gostava de contar e eu gostava de ouvir com riqueza de detalhes - o "farnel", as viagens pelos rios e trens, o encontro feliz com um cuiabano conhecido na estação de São Paulo, a chegada ao Rio de Janeiro. Realmente, um mútuo prazer que eu incentivei muitas vezes. Dava gosto vê-lo novamente altivo e entusiasmado. Personagem central da sua própria história e das suas antigas aventuras. Uma delícia!
Não tenho dúvidas de que houve um jovem sempre "moderno" no invólucro do velho Bugre. Tão moderno que conservou um inusitado senso crítico até quase o seu fim. Em vez de ficar hipnotizado pela TV (confortavelmente instalada em frente à sua cadeira de balanço), ele reagia aos exageros dos noticiários ou dos tele-dramas com um sorriso irônico e com a repetição irreverente da frase "é uma novela, é uma novela”! O que poderia haver de mais moderno, na virada dos anos 70/80, do que esse descrédito ao poder avassalador da mídia?
Nos últimos anos de sua vida, já bastante doente e alheio, conservava o hábito de “fingir” que tinha cigarro entre os dedos - levava-o à boca e até “batia” uma imaginária cinza. O jovem/velho Bugre morria, mas não se entregava!
Gosto de lembrá-lo assim - meio irreverente, meio fora dos padrões, bastante “moderno”, na melhor acepção do termo. E suficientemente ético para nunca ter usufruído de qualquer benefício indevido, apesar dos muitos amigos e da clientela de políticos. Tão bom se existissem mais e mais jovens e velhos Bugres! Modernos ou não.
A minha sincera homenagem ao velho Bugre, um verdadeiro cidadão cuiabano, mato-grossense, brasileiro. A sua imortalidade não se inscreve nas academias e, sim, no cotidiano da formação cultural, na memória desta terra e na saudade dos que privaram do seu convívio. Para sempre!"
Esse texto da socióloga e cientista política, professora aposentada da UFMT, Maria Manuela Renha de Novis Neves, na ocasião do centenário do meu pai, foi publicado em alguns jornais e sites em 1994.
O Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso reproduziu-o em sua Revista de 1995.
Hoje o meu pai estaria completando 128 anos, e, para homenageá-lo, reproduzo esta linda visão pessoal e essencialmente humana da sua nora Manuela sobre o cotidiano do já então "velho Bugre".
Seus filhos, noras, genros, netos, netas, bisnetas, bisnetos e tataranetos lhe agradecem e o reverenciam pelo exemplo de vida que nos deixou como patrimônio - um legado íntegro e imortal.
Gabriel Novis Neves
https://bar-do-bugre.blogspot.com
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